Mortalidade materna cresce nos EUA com leis antiaborto e 'desertos de atendimento'

Na contramão da tendência global, mortes de mulheres gestantes ou no puerpério vêm crescendo nas últimas décadas

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Washington

Na contramão da tendência mundial, a taxa de mortalidade materna cresce nos Estados Unidos. E há o temor de que o problema piore com as restrições ao aborto implementadas em diversos estados após a Suprema Corte determinar, no ano passado, que a interrupção voluntária da gravidez não é um direito constitucional.

Os principais fatores para o elevado número de mortes são o aumento de doenças crônicas, como obesidade e problemas cardiovasculares, e o avanço da idade média das gestantes, na faixa dos 30 anos, segundo os dados e estudos mais recentes.

Mulher grávida participa de manifestação contra o direito ao aborto em Kentucky em 2022; estado baniu o procedimento - Stefani Reynolds/AFP

Esse cenário é agravado pela dificuldade de acesso a serviços de saúde especializados –desde 2018, os EUA perderam 301 unidades de parto hospitalares. Hoje, há um total de 2.158 em operação no país, aponta um levantamento divulgado no mês passado.

"Nossa pesquisa mostra que cuidados maternos não são uma prioridade no nosso sistema de saúde, e ações precisam ser tomadas para garantir que todas as mães recebam o atendimento que elas precisam e merecem para ter gestações saudáveis e bebês fortes", diz em nota a médica Elizabeth Cherot, presidente da March of Dimes, organização sem fins lucrativos responsável pelo trabalho.

A taxa de mortalidade materna corresponde à proporção de óbitos durante a gestação, o parto e até 42 dias após o nascimento em cada 100 mil nascimentos com vida. São consideradas mortes ligadas à gravidez; homicídios, suicídios e overdose não entram na conta.

Nos EUA, esse número subiu de 12 em 2000 para 21 em 2020, segundo dados do Unicef (Fundo da ONU para a Infância). Enquanto isso, a taxa global caiu 32%. Na Europa Ocidental, foi de 9 para 6.

Para comparação, no vizinho Canadá, houve 11 mortes para cada 100 mil partos em 2020. No Brasil, esse número foi 72.

Com a pandemia de Covid, houve outro aumento de mortes nos EUA, e a taxa disparou para 33 em 2021, aponta o Centro para Prevenção e Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês). Das cerca de 2.000 mortes registradas no biênio, um quarto pode ser atribuído à Covid. Ainda não há dados para 2022.

A média nacional esconde uma disparidade racial expressiva.

"O viés implícito, em que uma pessoa não está consciente do seu preconceito, é particularmente problemático", afirmou a ginecologista obstetra Monique Rainford, do departamento de medicina de Yale e autora do livro "Grávida Enquanto Negra", a um site da universidade.

"Um prestador de cuidados pode pensar que está fazendo a coisa certa para a sua paciente grávida, mas o seu viés implícito contra a raça afeta o atendimento que ele fornece."

Mulheres negras são as que mais morrem proporcionalmente no país: 68,9 óbitos em cada 100 mil nascimentos em 2021, segundo a GAO (agência governamental de prestação de informações). Entre mulheres brancas, essa taxa é de 26,1. Entre hispânicas, 27,5.

De acordo com Rainford, um dos fatores é a chamada "carga alostática" –os efeitos acumulados de fatores de estresse, incluindo racismo e pobreza, sobre a saúde. O envelhecimento provocado pelo acúmulo dessa carga pode significar uma idade biológica até dez anos superior de mulheres negras em comparação com brancas, diz a médica de Yale.

Um estudo do think tank Milken Institute voltado para a chamada "América Extremamente Vulnerável", definida como as regiões do país com os piores indicadores econômicos e sociais, mostra que a taxa de mortalidade materna é ainda maior nessas regiões.

Em Arkansas, Alabama, Georgia, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Tennessee e Virgínia, a taxa de mortes entre mulheres negras é de 85,9 e, entre brancas, de 38,6.

Desses dez estados, seis tornaram o aborto ilegal (Arkansas, Alabama, Kentucky, Mississippi e Tennessee). Geórgia, Carolina do Norte e Carolina do Sul já manifestaram a intenção de banir o procedimento. Na Virgínia, o aborto continua sendo acessível, mas não é protegido por uma legislação estadual.

Muitos dos chamados "desertos de cuidado materno" condados sem um hospital ou centro de parto que ofereça serviços obstétricos ou que tenham um obstetra são localizados nessas regiões. Segundo a March of Dimes, 36% dos condados, onde vivem 2,2 milhões de mulheres em idade reprodutiva, encaixam-se nessa classificação.

Dois terços deles estão em áreas rurais. Nesse caso, as gestantes precisam enfrentar longas distâncias em busca de atendimento médico, o que dificulta a prevenção e tratamento de complicações tanto antes quanto depois do parto.

Entre 2018 e 2022, esses desertos aumentaram em 5%, consequência do encerramento de serviços especializados em hospitais diante do número de partos em queda. Outro fator deve agravar o problema: a resistência de médicos recém-formados a fazer residência em estados com as legislações mais duras contra o aborto.

Segundo análise da Associação de Universidades de Medicina Americanas, houve queda de 10,5% entre 2022 e 2023 nas inscrições para residência em ginecologia e obstetrícia em estados que baniram o aborto. Considerando todas as especialidades, a queda foi de 3%. Onde a interrupção da gravidez é permitida após 22 semanas de gestação, esses percentuais são de -5,3% e -1,9%, respectivamente.

Enquanto o número de especialistas cai, pesquisa sugere que o de partos pode estar subindo onde o aborto foi banido. Análise de pesquisadores da John Hopkins sobre o Texas publicada em julho estimou em cerca de 10 mil o números de nascimentos acima do esperado se a tendência pré-proibição tivesse se mantido –alta de 3%.

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