Ultradireita europeia corrige rota no discurso de política externa e economia

Setor se favorece com radicalização de moderados e faz giro por pragmatismo, mas bandeiras culturais seguem as mesmas

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São Paulo

A direita radical europeia já não é exatamente a mesma. Basta olhar a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni: desde que chegou ao poder, a conservadora já baixou a fervura do discurso anti-União Europeia e tem mostrado alinhamento às potências ocidentais em temas como o apoio à Ucrânia e o fortalecimento da Otan.

Na economia, a primeira líder de ultradireita a comandar a Itália desde a Segunda Guerra tem se curvado a diretrizes europeias, ao mesmo tempo em que garante para seu país o acesso a fundos do bloco.

A recalibragem se restringe à economia e à política externa —mas, como há exemplos semelhantes em outros países de peso no continente, alguns analistas já têm visto esta como uma fase de transformação de forças da ultradireita na Europa.

O premiê da Espanha, Pedro Sánchez, ao lado do líder do Partido Popular (PP), Alberto Feijóo, em Madri; na ocasião, socialista negou pacto proposto por Feijóo para apoiar um governo da direta por dois anos e, assim, fugir das exigências feitas por siglas independentistas para viabilizar um novo governo no país
O premiê da Espanha, Pedro Sánchez, ao lado do líder do Partido Popular (PP), Alberto Feijóo, em Madri; na ocasião, socialista negou pacto proposto por Feijóo para apoiar um governo da direta por dois anos e, assim, fugir das exigências feitas por siglas independentistas para viabilizar um novo governo no país - Thomas Coex - 30.ago.23/AFP

Análises mais emocionadas dirão que é uma guinada ao centro, mas não é essa a conclusão da maioria dos especialistas; ultradireitistas, afinal, continuam firmes em suas bandeiras nacionalistas e culturais. Para quem estuda o tema, as posições em política externa e economia nunca foram inegociáveis ou definidoras da direita radical na Europa; por isso, não seria tão difícil abrir mão delas em nome do pragmatismo.

"Há muitos anos eu achava que essa mudança viria", diz o historiador português e ex-eurodeputado Rui Tavares, hoje deputado pelo partido de centro-esquerda Livre e um dos principais nomes do progressismo luso. "A eurofobia da esquerda radical era mais sincera do que a da extrema direita. A direita percebeu que a maior parte dos europeus pode ser crítica à União Europeia, mas não quer a saída do bloco."

Não é à toa que quem se soma a Meloni nessa correção de rota é outro símbolo da ultradireita europeia: Marine Le Pen, candidata à Presidência derrotada nas últimas eleições da França.

"Da primeira vez em que Le Pen foi ao segundo turno com [o atual presidente francês, Emmanuel] Macron, ela ainda falava em sair do euro. Na segunda, não tocou no assunto. Ela vê que, provavelmente, perdeu por causa disso", segue Tavares, para quem a mudança também é efeito das consequências do brexit para o Reino Unido.

O caso francês ainda tem mais um obstáculo aos ultradireitistas: como até as eleições legislativas são majoritárias —é eleito quem obtiver a maioria absoluta dos votos—, candidatos mais radicais têm dificuldade de vencer sem fazer gestos para cativar uma gama mais variada de eleitores. É mais fácil conseguir cadeiras em um Parlamento sem ter que abrir mão de bandeiras em pleitos proporcionais.

Tavares argumenta, no entanto, que a ultradireita não estaria se tornando favorável ao bloco europeu, mas sim adotando uma neutralidade pragmática com objetivos claros.

O outro ponto de inflexão na política externa tem a ver com a guerra na vizinhança: o conflito na Ucrânia levou muitos ultradireitistas, antes críticos à ordem internacional formada depois da Segunda Guerra, a se oporem a Vladimir Putin e se alinharem à Otan.

Há quem aponte isso como um comportamento de ocasião. "A política externa está a serviço da política doméstica", diz o holandês Cas Mudde, professor da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, que estuda a direita radical desde os anos 1980 e é autor do livro "Extrema Direita Hoje" (EdUERJ, 2022).

"A extrema direita, com algumas exceções, é contra a ordem mundial unipolar que os EUA representam. Quando achavam que Putin era mais favorável a essa posição, simpatizavam com o russo. Agora que ele virou o demônio, não serve mais a esse propósito. Quando a guerra se tornar irrelevante, voltarão a criticar a Otan."

Na Europa, esses grupos também mostram variações na agenda econômica. Rui Tavares aponta que o Chega, partido de extrema direita de Portugal, por exemplo, já teve um discurso mais liberal na economia —mas que isso mudou. "Agora são um partido mais social, com políticas que seriam supostamente de esquerda. Eles veem isso [a pauta econômica] como meramente instrumental."

Já Cas Mudde defende que uma das transformações da ultradireita é justamente a defesa de um Estado interventor, mas com viés nacionalista —ainda que haja diferenças de país a país.

"Nos anos 1980 e 1990, eles usavam uma linguagem mais neoliberal. Agora a maioria defende um Estado de bem-estar chauvinista. Eles apoiam as políticas sociais, mas não para todos."

Esses vaivéns pragmáticos só são possíveis porque não fica aí o coração da direita radical no velho continente. O nacionalismo e o populismo —além da guerra cultural— são bem mais relevantes. Entra nesse bojo o discurso anti-imigração, por exemplo. Ou a pauta anti-LGBT+.

Não é à toa que a mesma Meloni celebrada na Casa Branca por apoiar a Otan e se opor à China implemente políticas contra direitos de casais homossexuais, dificultando que crianças sejam registradas com o nome de dois pais ou duas mães.

Tudo isso ocorre em meio a dificuldades eleitorais da ultradireita em alguns países importantes do bloco europeu. Na última eleição da Espanha, por exemplo, o Vox encolheu de 52 para 33 assentos no Parlamento. Analistas dizem que a queda pode estar ligada a uma onda de "voto útil" contra a ultradireita.

Ao mesmo tempo, o conservador PP (Partido Popular) conseguiu 136 de 350 cadeiras. Mesmo com o apoio do Vox, no entanto, ainda faltariam sete para ter a maioria e conseguir levar o líder do PP, Alberto Feijóo, ao posto de premiê. Na última quarta-feira (30), Feijóo pediu ao premiê interino, Pedro Sánchez, o apoio do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) para governar por dois anos.

A resposta foi negativa, e o impasse continua.

Já na Alemanha, a sigla ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) tem crescido em apoio —mas um "cordão sanitário" formado por outros partidos, que se recusam a fazer alianças com a legenda, dificulta que o grupo chegue ao poder.

Esses percalços não devem, contudo, ser superestimados, porque há vitórias dos ultradireitistas em outros campos. E eles conseguiram estabelecer algumas de suas pautas no debate público.

"A extrema direita não está pronta para dominar a política. Mas o centro, embora tenha resistido, moveu-se para a direita radical em algumas posições", diz Cas Mudde. "É possível medir o poder da extrema direita de dois jeitos: eleitoral e ideológico —quão influentes são as ideias deles. Pode-se celebrar que o Vox perdeu espaço na Espanha, mas o Partido Popular continua assumindo posições de extrema direita."

Na própria Alemanha, a União Democrata Cristã (CDU), maior partido do país e de centro-direita, tem acenado com possíveis alianças regionais com a AfD —e recuado diante de críticas.

Para Rui Tavares, esse tipo de aliança é uma questão de tempo. "Mesmo na Espanha e em Portugal, é claro para toda a gente que, na primeira oportunidade, a centro-direita vai se aliar à extrema direita. Eles consideram que, de outra forma, não vão conseguir ter maioria [nos parlamentos e congressos]. O que temos é uma direita que no seu todo está mais radicalizada."

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