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Cubano recrutado pela Rússia mostra base e envia dinheiro de contrato à família

Recrutamento feito pelo WhatsApp leva dezenas de moradores da ilha atraídos por salário mensal em contrato de um ano

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Reuters

A costureira cubana Yamidely Cervantes comprou uma nova máquina de costura pela primeira vez em anos, além de uma geladeira e um celular —tudo pago pela Rússia.

Ela diz que seu marido, Enrique Gonzalez, que trabalha como pedreiro, saiu de casa na pequena cidade de La Federal no dia 19 de julho para lutar pelo Exército russo na Ucrânia. Dias depois, ele enviou parte de seu bônus de inscrição de cerca de 200 mil rublos (US$ 2.040, R$ 10,4 mil) para ela, que recebeu em pesos cubanos, segundo Cervantes.

Isso é bastante dinheiro na ilha comunista, economicamente devastada, e representa mais de cem vezes o salário médio mensal do Estado de 4.209 pesos (US$17, ou R$ 86, no mercado informal), de acordo com o escritório de estatísticas nacional.

Homem não identificado mostra o cubano Maykel Estrada com um rifle em Riazan, na Rússia
Homem não identificado mostra o cubano Maykel Estrada com um rifle em Riazan, na Rússia - Alexandre Meneghini - 19.set.23/Reuters

Poucos lugares sentem mais a crise do que La Federal, uma comunidade de cerca de 800 pessoas nos arredores de Havana, onde 1 em cada 4 residentes está desempregado, de acordo com dados do governo de 2022.

Na rua de terra de 100 metros onde Cervantes mora, pelo menos três homens partiram para a Rússia desde junho, e outro vendeu sua casa em antecipação à partida, diz ela. "Você pode contar nos dedos aqueles que ficaram", afirma a mulher de 42 anos. "A necessidade é o que está impulsionando isso."

A Reuters investigou as histórias desses quatro homens, juntamente com mais de uma dúzia de outros cubanos recrutados para ir à Rússia de distritos em torno da capital, Havana: de construtores e comerciante a trabalhadores de refinarias e de uma empresa de telefonia. Onze dos homens voaram de fato para a Rússia, enquanto outros sete desistiram no último momento.

Entrevistas com muitos deles, além de amigos e parentes, juntamente com uma série de mensagens de WhatsApp, documentos de viagem, fotos e números de telefone que eles forneceram para corroborar suas histórias, pintam o quadro mais detalhado até agora de como os cubanos estão se reunindo para fortalecer a máquina de guerra de Moscou.

O Kremlin e o Ministério da Defesa da Rússia não responderam às perguntas sobre cubanos sendo recrutados para seu exército. O regime cubano também não respondeu às perguntas para esta reportagem.

A notícia de cubanos no Exército russo ganhou manchetes em setembro, quando o regime de Havana —um aliado de longa data da Rússia que diz "não fazer parte da guerra na Ucrânia"— afirmou ter prendido 17 pessoas ligadas a uma rede de tráfico humano que atraía cubanos para lutar por Moscou. A Reuters não conseguiu identificar os envolvidos na suposta rede de tráfico e quando ou se eles foram presos.

Os recrutas identificados pela Reuters se voluntariaram para ir à Rússia trabalhar para o exército após abordagens nas redes sociais de uma recrutadora que se identificou como "Dayana". Em La Federal, por exemplo, todos os nove recrutas identificados pela Reuters se inscreveram para lutar na guerra. Em Alamar, um subúrbio a leste de Havana, a maioria dos cinco homens se inscreveu para funções não combatentes, como construção, embalagem de provisões e logística.

O marido de Cervantes, Gonzalez, falando por videochamada de uma base militar russa próximo à cidade de Tula, ao sul de Moscou, afirma à Reuters que é um dos 119 cubanos em treinamento no local. Quando chegou à Rússia assinou um contrato para trabalhar para o exército, traduzido para o espanhol. "Todos aqui sabiam pelo que estavam vindo", afirma, sorrindo com uniforme militar enquanto mostrava à Reuters um tour digital pelo acampamento, cercado por pinheiros. "Eles vieram para a guerra."

Gonzalez diz que os 119 cubanos estavam treinando para lutar na guerra, embora ainda não estivesse claro para onde seriam enviados. "Tenho vários amigos na Ucrânia, e eles estão em lugares onde as bombas estão caindo, mas eles ainda não tiveram confrontos com os ucranianos. Está tudo bem aqui, mas quando formos para lá, estaremos em uma zona de guerra."

A Reuters não conseguiu entrar em contato com nenhum dos outros homens, embora tenha confirmado por meio de mensagens do WhatsApp e fotos que eles voaram para a Rússia e que dois estão agora na Crimeia.

"Posso confirmar que a embaixada ucraniana em Havana entrou em contato com as autoridades cubanas sobre esse assunto", diz o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, Oleg Nikolenko, ao ser contatado para comentar sobre o recrutamento de cubanos para o Exército russo.

Um porta-voz do Departamento de Estado americano afirma que os Estados Unidos estão monitorando de perto a situação. "Estamos profundamente preocupados com relatos de que jovens cubanos foram enganados e recrutados para lutar pela Rússia", diz.

Yamidely Cervantes, 42, mostra foto do primo, Luis Osorio, carregando um rifle na Crimeia, segundo ela
Yamidely Cervantes, 42, mostra foto do primo, Luis Osorio, carregando um rifle na Crimeia, segundo ela - Alexandre Meneghini - 19.set.23/Reuters

Em La Federal, a notícia do trabalho do exército começou a se espalhar em junho, de acordo com os moradores entrevistados. Ofertas para se juntar, compartilhadas via Facebook, Instagram e WhatsApp, se tornaram o assunto da cidade, com Dayana sendo mencionada como o contato.

Mais de duas dúzias de jovens entrevistados pela Reuters em Havana e arredores falaram sobre a escala do êxodo.

Cristian Hernandez, 24, riu quando perguntado sobre quantas pessoas haviam deixado a área ao redor de La Federal. "Um monte", diz. "Quase todos os nossos amigos foram para lá."

Yoan Viondi, 23, que mora a poucos minutos de bicicleta da rua principal, afirma que sabia que cerca de cem homens em Villa Maria, distrito que inclui La Federal, haviam sido recrutados para o esforço de guerra russo desde junho.

Um amigo lhe deu o contato do WhatsApp de Dayana, uma mulher cubana que, segundo ele, comprava passagens de avião para os recrutas. Ela também foi mencionada como um contato importante pela maioria dos recrutas e parentes entrevistados pela Reuters.

No caso de Viondi, ele não perdeu tempo. "Oi, boa tarde", disse a ela em uma mensagem de 21 de julho, vista pela Reuters. "Por favor, preciso de informações."

Praça em La Federal, nos arredores de Havana, em Cuba, de onde saíram moradores para lutar pela Rússia na Guerra da Ucrânia
Praça em La Federal, nos arredores de Havana, em Cuba, de onde saíram moradores para lutar pela Rússia na Guerra da Ucrânia - Alexandre Meneghini - 19.set.23/Reuters

Dayana, que aparece em seu ícone de chat como uma mulher de cabelos escuros com um boné de camuflagem, respondeu com os termos do contrato de 1 ano quase instantaneamente, de acordo com os horários das mensagens. A primeira linha da mensagem diz: "Este é um contrato com o Exército russo pelo qual você recebe cidadania."

"Se você concordar, basta enviar uma cópia do seu passaporte", dizia a mensagem de Dayana. Em dois minutos, Viondi enviou uma cópia digital do seu passaporte. Uma hora depois, Dayana respondeu em uma mensagem de áudio ouvida pela Reuters: "Perfeito, amanhã poderei dizer em que dia você viajará", disse ela.

A Reuters não conseguiu entrar em contato com Dayana para comentar sobre o número usado por Viondi e outros, ou para confirmar seu nome completo.

No final, apesar de seu entusiasmo inicial, Viondi ficou ansioso com a possibilidade de ir para a Rússia e cortou o contato com Dayana. Ele enfatiza que as pessoas que se inscreveram em La Federal sabiam que iriam lutar. "É difícil viver aqui. Todo mundo dizia: 'Se eu escolher isso, não vou morrer de fome em Cuba'", diz, acrescentando que ninguém pediu a ele que mantivesse interações com Dayana em segredo.

Cervantes, a costureira de La Federal, lembra da desesperança que seu marid, Gonzalez, agora na Rússia, sentia nos meses antes de partir. "Trabalho, trabalho, trabalho", diz ela sobre a vida dele. "Um dia, ele me disse: 'Mami, eu simplesmente não aguento mais'. Um dia ele me disse: 'Vou para a Rússia', me mostrou a cópia do passaporte e tinha a passagem e tudo mais. Isso foi no dia 17 de julho e ele partiu no dia 19."

Cervantes optou por ficar para trás, mas a Reuters confirmou por meio de fotos e vídeos no WhatsApp que pelo menos três esposas de La Federal se juntaram a seus maridos na Rússia, assim como pelo menos uma criança.

Cervantes disse que seu primo, Luis Herlys Osorio, se alistou no Exército russo semanas depois que seu marido partiu, e que sua esposa, Nilda, também está agora na Rússia: "Ela foi, e muitas das mulheres do bairro também foram."

A Reuters revisou fotos nas redes sociais de Nilda, com outras duas esposas de La Federal, em uma casa alugada na cidade de Riazan, no oeste da Rússia. Osorio está na Crimeia, disse Cervantes.

Cuba enviou mensagens contraditórias neste mês sobre seus cidadãos lutando pela Rússia. Em 8 de setembro, quando anunciou as prisões da rede de tráfico, também afirmou que era ilegal para seus cidadãos lutarem por um exército estrangeiro, punível com prisão perpétua.

Dias depois, porém, o embaixador de Cuba em Moscou disse que Havana não se opunha aos cubanos "que apenas querem assinar um contrato e participar legalmente do Exército russo nesta operação". Poucas horas depois, Cuba contradisse seu enviado, reiterando que os cubanos estavam proibidos de lutar como mercenários de guerra.

Gonzalez se opõe a ser chamado de mercenário. O ex-pedreiro, que havia recebido seu passaporte russo, compara sua decisão de lutar com a Rússia à dos cubanos que lutaram em uma guerra apoiada pela União Soviética em Angola na década de 1970.

Nessa guerra no sul da África, amplamente vista como um conflito por procuração da Guerra Fria, Cuba enviou dezenas de milhares de soldados para lutar por um grupo guerrilheiro comunista apoiado por Moscou contra um movimento anticomunista rival sustentado pelos Estados Unidos.

"Estou seguindo o exemplo deles", diz Gonzalez sobre os combatentes cubanos em Angola, acrescentando que Moscou havia sido um aliado fiel de Cuba por décadas e que a União Soviética tinha fornecido ajuda econômica à ilha. "A Rússia ajudou a sustentar minha família."

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