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Podcast francês esmiúça interesses envolvidos no conflito em Nagorno-Karabakh

Quatro especialistas explicam situação confusa do enclave em programa da emissora pública France Culture

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São Paulo

A Armênia se sente fraca e desprotegida. É em parte por isso que não reagiu contra o Azerbaijão, seu poderoso vizinho da região do Cáucaso, quando ele exigiu que se autodissolvesse a controversa república de Nagorno-Karabakh, enclave em seu território, habitado por armênios étnicos.

Aliás, nem a Armênia acreditava que o pequeno território, de pouco mais de 800 km2 e, até há um mês, 120 mil habitantes, se dispusesse à independência. É uma situação confusa, em que entram a Turquia, Israel, o Irã e sobretudo a Rússia, hoje bem mais preocupada em sair honrosamente da aventura em que se meteu na Ucrânia.

Um retrato com os interesses de todos esses países foi fornecido por quatro especialistas em recente podcast da France Culture, uma das emissoras públicas da rádio francesa.

Crianças refugiadas na cidade de Goris, na Armênia, após ação militar do Azerbaijão para expulsar separatistas de Nagorno-Karabakh
Crianças refugiadas na cidade de Goris, na Armênia, após ação militar do Azerbaijão para expulsar separatistas de Nagorno-Karabakh - Diego Herrera/AFP

Os armênios foram historicamente marcados pelo genocídio em que os otomanos —turcos da época— exterminaram, a partir de 1915, no mínimo 800 mil civis. A memória dessa tragédia provocou o temor de que o regime azerbaijano planejasse agora, contra os moradores do enclave, algo próximo a uma "limpeza étnica".

Foi essa a razão pela qual a população culturalmente armênia deixou seus bens e fugiu pelo chamado corredor de Lachin, em direção à pátria-mãe.

O enclave de Nagorno-Karabakh era guardado por 2.000 soldados russos, contingente que o Kremlin reduziu pela metade ao deslocar uma parcela para o conflito da Ucrânia. No podcast, o ex-embaixador da França nos Estados Unidos Gérard Araud disse que a Armênia não desconhece a atual anemia regional de Moscou, e é por isso que tenta se aproximar dos ocidentais.

Mas estes têm uma presença estratégica muito fraca no Cáucaso. A começar pelos Estados Unidos e pela França. Esta convocou a reunião do Conselho de Segurança que recomendou calma quando armênios e azerbaijanos corriam o risco de se enfrentar em novo conflito direto.

Marie Dumoulin, do Conselho Europeu de Relações Exteriores, lembra que, quando houve o colapso da União Soviética —a Armênia estava ligada institucionalmente aos russos— os armênios quiseram a independência do enclave. Mas não exigiram de imediato que ele fosse visto como território autônomo e só no ano passado aceitaram formalmente se tratar de área da soberania azerbaijana.

Além do mais, a suposta independência de Nagorno-Karabakh colocaria em risco o princípio de continuidade territorial, que o Azerbaijão pode tentar romper —e então seria caso de nova guerra—, caso procure abrir um corredor que dê acesso à Turquia. A hipótese foi levantada no podcast por Taline Minsddisn, diretora do Observatório dos Estados Pós-Soviéticos.

Nos tempos do comunismo, o enclave tinha um estatuto especial que não mais existe, diz ela. A Turquia, que assistia os problemas do Cáucaso como observadora, é hoje muito mais ativa. E se tornou para os países da região um obstáculo para o avanço do Irã.

Os iranianos entram em cena porque desaprovam radicalmente a aproximação de Israel com o Azerbaijão, país que recebe armas israelenses —tem PIB dez vezes maior que o da Armênia, em razão do petróleo e do gás que exporta— e cede território para que Israel possa monitorar a região.

A Turquia também se relaciona bem com Israel, que, para não ferir os escrúpulos do regime turco, nunca reconheceu que os otomanos, predecessores da Turquia, tenham praticado genocídio contra os armênios.

Quanto aos russos, eles sabem que não terão mais motivos para permanecer no enclave quando o último armênio étnico se retirar. É o que lembra Thorniké Gordadzé, ex-ministro da Geórgia e hoje professor da Sciences Po francesa.

Mesmo diplomaticamente enfraquecidos pelo conflito com a Ucrânia, os dirigentes do Kremlin acreditam ter poderes sobre a Armênia. Tanto que manobram para que o primeiro-minisro daquele país, Nikol Pashinyan, seja substituído por alguém mais maleável aos planos de Vladimir Putin, diz Gordadzé.

A moral provisória dessa história é a de que armênios e azerbaijanos estão longe de esgotar numericamente os papéis de atores nesse jogo regional. Há uma soma bem maior de interesses que eram no passado camuflados pelo monolitismo soviético e que hoje formam um caleidoscópio plural, sobre o qual os ocidentais demonstram desinteresse ou pouco conhecimento.

O que os ocidentais apontam é que a crise de Nagorno-Karabakh desta vez eclodiu no momento em que se abria, em Nova York, a Assembleia-Geral das Nações Unidas. E que mais uma vez a organização demonstrou inapetência para tratar de uma questão de peso na comunidade internacional.

Mas isso não significa que o multilateralismo esteja em crise. Significa que as superpotências estão interessadas em formas bilaterais de diplomacia, sob o pano de fundo das tensões atuais entre Estados Unidos e a China, diz o ex-embaixador Gérard Araud.

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