Descrição de chapéu
guerra israel-hamas

Guerra em Israel mostra limite da retórica agressiva do Irã

Teerã fala grosso, mas teme poderio militar americano e conflito com o Estado judeu

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Um mês após o violento ataque do Hamas a Israel que reabriu a temporada de guerras no Oriente Médio, um temor permeia toda a análise do conflito —a escalada regional.

No papel, ela parecia terrivelmente factível: o grupo terrorista palestino atrairia Israel para uma guerra destrutiva contra a Faixa de Gaza, desguarnecendo outras fronteiras, que ficariam expostas para um ataque pelo norte do Hezbollah libanês, apoiado pelo mais esporádico emprego de mísseis disparados do distante Iêmen, no sul.

Manifestantes queimam bandeira de Israel em frente à antiga embaixada dos EUA em Teerã, em protesto para marcar os 44 anos da crise dos reféns americanos no local, após a Revolução Islâmica
Manifestantes queimam bandeira de Israel em frente à antiga embaixada dos EUA em Teerã, em protesto para marcar os 44 anos da crise dos reféns americanos no local, após a Revolução Islâmica - Atta Kenare - 4.nov.2023/AFP

Numa exacerbação, a entrada de Teerã no conflito. "Era uma estratégia perfeita que, em última análise, falhou", diz o papa da geopolítica americana, George Friedman. Fundador das consultorias Stratfor e Geopolitical Futures, ele evita prognósticos dado o histórico de volatilidade regional, mas se questiona: "Resta saber se o Hamas tem um plano de contingência".

O que se viu ao longo das semanas foi um Irã cauteloso, ainda que fiel à sua retórica antiocidental agressiva. Nada de envolvimento direto, salvo um improvável ataque a seu território, e a delegação do serviço de fustigar Israel ao chamado Eixo da Resistência.

O grupamento é o legado de 40 anos de políticas de infiltração promovidos pela República Islâmica nos países do Oriente Médio e Norte da África, testemunho da influência exercida por Teerã sobre populações da minoria muçulmana xiita e aliados sunitas felizes em receber apoio militar e financeiro dos aiatolás.

No lado xiita, por exemplo, há o Iraque, o Hezbollah e os houthis do Iêmen. Do sunita, o Hamas e o Jihad Islâmico. E há a Síria, país de maioria sunita comandado por uma ditadura alauita salva na guerra civil por uma coalizão unindo o poderio aéreo da Rússia e tropas comandadas pelo Irã que incluíam membros do Hezbollah.

O ódio a Israel e aos EUA é um denominador comum no Eixo da Resistência, assim como o temor reverencial ao poderio militar que a dupla pode mobilizar. Mas a guerra aberta em Gaza demonstrou que a agressividade retórica do grupo tem limites práticos.

O imediato envio de recursos poderosos de Washington para a região, por exemplo, teve o condão de anular quaisquer desejos de escalada. Dois grupos de porta-aviões, reforços em bases aéreas e até um submarino de uso estratégico são recado mais que suficientes.

Não bastassem, há o fato de que Israel tem a bomba atômica. O alegado descuido de um ministro irrelevante do governo em Tel Aviv, ao falar em usá-la contra Gaza, um despautério militar, tem mais a ver com lembrar a região de uma realidade não admitida.

A Federação dos Cientistas Americanos, principal referência mundial no controle de ogivas nucleares, calcula que Israel tenha cerca de 90 bombas. É mais que suficiente para assustar o Irã, ele mesmo uma potência nuclear eventual, dado que tem os meios para fazer o seu artefato quase todos à mão.

Diferentemente dos EUA, Israel poderia empregar a arma se sua existência estivesse comprometida por um ataque maciço, como quase aconteceu no terceiro dia da Guerra do Yom Kippur, em 1973.

Com tudo isso, o que se viu foi uma reação de baixa intensidade por parte do Hezbollah, que mantém uma quantidade significativa de material bélico israelense engajada com suas trocas de fogo diárias na fronteira com o Líbano. Apesar de incrementos aqui e ali, nada parecido com uma guerra total.

Como disse seu líder, Hassan Nasrallah, é mais importante deixar o adversário com medo. Afinal, o grupo é muito mais musculoso do que o Hamas com seus estimados 150 mil mísseis e foguetes. A frase faz sentido, mas trai o temor na via contrária: uma guerra com Israel poderia obliterar a agremiação, dado que os EUA deixaram claro que usariam seu poder de fogo no Mediterrâneo contra ela.

Se é verdade que Hamas, Hezbollah e outros têm agendas próprias, é fato que são caudatários dos aiatolás de Teerã. As políticas que emanam do Irã ajudam a guiar o tal eixo, não menos pelo peso financeiro que as acompanham —a inteligência americana põe em R$ 3,5 bilhões anuais a ajuda do regime clerical aos libaneses, por exemplo.

Os iranianos temem a guerra ampliada também porque ainda se recuperam dos efeitos da pandemia sobre sua economia, de resto dependente de laços com Rússia e China para sobreviver às sanções renovadas por Donald Trump em 2018. Naquele ano, o então presidente deixou o acordo de salvaguardas que afastaria Teerã da bomba atômica.

O país crescerá cerca de 2% neste ano, segundo projeções. Mas as sanções limitam brutalmente seu acesso a investimento e tecnologia, e ele ainda não recuperou os cerca de 1 milhão de empregos perdidos sob a Covid-19. A inflação está na casa dos 30% a 40% anuais, diz o Banco Mundial.

Dispensável dizer que a eventual volta à Casa Branca de Trump, muito mais agressivo em relação aos aitaolás, é algo que também está nas contas dos riscos que o Irã tem em mente quando fustiga Joe Biden.

Teerã nega ter dado a ordem para o 7 de outubro, versão em geral aceita nos EUA e em Israel, seja pela natureza agora escancarada do Hamas, seja por um desejo de evitar escalada. Mas sua vitória estratégica até aqui se concentra em degringolar a normalização em curso na relação entre Tel Aviv e os vizinhos árabes, cujo prêmio maior seria a paz com a Arábia Saudita.

O isolamento regional de Teerã se anunciava de tal forma que, por meio da China, o país se acertou com os sauditas. Agora, veem a destruição de Gaza ressoar em todo o mundo islâmico, incluindo seus rivais, como a Turquia e a Jordânia.

Mas uma janela para "jogar os judeus ao mar", como gostam de dizer em Teerã, até aqui não se insinuou, seja por não estar no plano o voluntarismo do Hamas, aceitando se aniquilar por uma reação que não veio, seja pela dissuasão israelo-americana.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.