Kissinger foi o cérebro do apoio dos EUA a ditaduras na América do Sul

Secretário de Estado legitimou regime brasileiro, impulsionou golpe no Chile e acelerou repressão na Argentina

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Buenos Aires

"Para onde o Brasil se inclinar, toda a América Latina se inclinará", discursou o ex-presidente americano Richard Nixon em dezembro de 1971, ao receber o então presidente e ditador brasileiro Emílio Médici com toda a pompa na Casa Branca. O encontro selava o que viria nos anos seguintes: um alinhamento contra governos de esquerda e o comunismo na região.

Por trás da frase, estava Henry Kissinger, um dos diplomatas mais influentes do século 20 que morreu nesta quarta (29) aos 100 anos. Durante seus oito anos à frente da política externa dos Estados Unidos, Kissinger foi o cérebro que articulou o apoio a algumas das ditaduras mais sangrentas do Cone Sul. Legitimou o regime brasileiro, impulsionou o golpe no Chile e acelerou a repressão na Argentina.

Henry Kissinger (secretário de Estados dos Estados Unidos) durante visita ao Brasil, acompanhado por Ernesto Geisel
Ex-presidente Ernesto Geisel conversa com Henry Kissinger durante visita ao Alvorada, em Brasília, em 1976, na ditadura militar - Orlando Brito - 20.fev.1976/Agência O Globo

Quem diz é Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV e autor do livro "Kissinger e o Brasil", que entrevistou o ex-secretário pouco antes de lançar a obra pela editora Zahar, em 2009. "Obviamente ele sempre negou que seu apoio tenha feito diferença em relação aos direitos humanos. O argumento dele era que esses países já eram autoritários independentemente disso", diz.

Com uma memória que impressionava, Kissinger morreu convicto de que acertou na avaliação que fez sobre o Brasil naquela época. "Ele me disse: eu sempre achei que o Brasil tinha mais poder do que o resto do mundo entendia. Ele acreditava que um país do tamanho do nosso tinha condições de exercer peso próprio nas relações internacionais."

Além disso, o diplomata nutria uma relação afetiva com o país, sentimento que não existia nos casos do Chile ou da Argentina, diz Spektor. Desde sua tentativa de abrir um centro de estudos brasileiros na Universidade Harvard, até as dezenas de cartas pessoais trocadas com o então chanceler Antonio Francisco Azeredo da Silveira e a paixão pelo futebol que o fez levar Pelé aposentado aos EUA.

O Brasil já vivia uma ditadura militar havia quase quatro anos quando ele pegou nas rédeas da política exterior americana. O ano era 1969, início do período mais brutal de torturas, exílios e censuras para erradicar a militância comunista. O papel de Kissinger no caso brasileiro foi, então, legitimar essa repressão aos olhos do mundo, segundo o professor.

Em 1974, no entanto, com a luta armada suprimida e a ditadura já estabelecida, o poder mudou para as mãos do general Ernesto Geisel, e sua ideia de tornar o Brasil um aliado incondicional dos Estados Unidos fracassou. De perfil mais desenvolvimentista, Geisel ignorou sete convites para ir a Washington.

Foram dois os principais marcos da ruptura: ambos os países se sentiram apunhalados pelas costas quando, por um lado, o Brasil apoiou a independência marxista de Angola e, por outro, Kissinger pressionou, sem sucesso, os alemães a não venderem a tecnologia de enriquecimento de urânio ao programa nuclear brasileiro.

No Chile a história foi diferente. A eleição do socialista Salvador Allende em 1970 acendeu um alerta tanto no Brasil quanto nos EUA, que tiveram interferência direta no golpe. A essa altura, o país já recebia o grosso de exilados brasileiros que aproveitavam a liberdade de Santiago para denunciar crimes da ditadura brasileira.

"Kissinger ajudou a asfixiar a economia no governo Allende e financiou a oposição desde o início, para criar o caos e romper a legalidade", diz Tiago Nery, pesquisador do Lab-Mundo da Uerj, lembrando que o diplomata também é conhecido por ter tentado impedir a posse do presidente eleito.

"Ele escreve nas suas memórias da Casa Branca que a pior coisa que podia ter acontecido para a política dos EUA na América Latina foi a vitória eleitoral de Allende. No entendimento dele, foi mais grave que a chegada de Fidel Castro em Cuba, porque não era possível derrubá-lo de forma aberta, teria que ser de forma encoberta", afirma Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Uerj.

A partir do golpe do ditador Augusto Pinochet, em 1973, Kissinger passou a apoiá-lo sistematicamente, defendendo-o em organismos internacionais e bloqueando críticas às torturas. Ele nada fez quando a CIA o informou de que Pinochet assassinaria o ex-chanceler de Allende, Orlando Letelier, em um ataque a bomba em Washington em 1976.

Naquele ano, outro golpe militar também derrubou Isabel Perón na Argentina. Foi em março, e o secretário de Estado americano já previa que poderia deixar o governo se o presidente Gerald Ford —seu chefe desde a renúncia de Nixon— perdesse a tentativa de reeleição no fim do ano.

"No primeiro encontro de Kissinger com o regime argentino, ele diz: façam o que têm que fazer, mas rápido, porque eu não vou conseguir defender vocês por muito tempo", conta Spektor. A Argentina acumulou o maior número de mortos e desaparecidos da região, e Ford de fato perdeu as eleições. Foi o fim da era Kissinger e o início da política de condenação das ditaduras latino-americanas pelo democrata Jimmy Carter.

E o que ficou dessa era até hoje? Para o sociólogo Simón Escoffier, professor da Universidade Católica do Chile (UCC), "a atuação de Kissinger na época ajudou a construir a cultura contra a esquerda e o comunismo presentes até agora na direita e extrema direita, proveniente da Guerra Fria".

Gonçalves, da Uerj, discorda. "Ele não era um idealista, um criador de mundos e ideias. Era um realista. Trabalhava no xadrez político com as peças que tinha em mãos, por isso não o vejo como um Donald Trump. Trump declarou guerra comercial à China, e Joe Biden manteve essa política. Já Kissinger foi até Pequim e reconheceu seu poder", resume.

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