Descrição de chapéu LGBTQIA+

Vaticano aprova bênção a casais do mesmo sexo, mas mantém veto a casamentos

Novo aceno do papa Francisco à comunidade LGBTQIA+ vem pouco após permissão para batismo de pessoas trans

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Em decisão histórica, o Vaticano autorizou nesta segunda-feira (18) a bênção a casais de pessoas do mesmo sexo e àqueles considerados "em situação irregular", termo usado para se referir aos que estão em sua segunda união após um divórcio. A instituição, porém, não alterou seu veto ao casamento homoafetivo.

O papa Francisco durante a oração do Angelus, no Vaticano
O papa Francisco durante a oração do Angelus, no Vaticano - Guglielmo Mangiapane - 17.dez.23/Reuters

O documento aprovado pelo papa Francisco, que acaba de completar 87 anos, vem em um momento no qual crescem os debates sobre a longevidade do pontificado do argentino, iniciado há dez anos.

Com sintomas recorrentes de bronquite, uma artrose no joelho e dor ciática, o pontífice tem rareado sua participação em eventos públicos, em especial aqueles que demandam percorrer longas distâncias, ainda que haja a expectativa de que faça em 2024 uma aguardada visita à Argentina, seu país natal.

O texto desta segunda-feira destaca que o ato da bênção litúrgica aos casais homoafetivos em nada deve se assemelhar ao casamento. "Essa bênção nunca será realizada ao mesmo tempo que ritos civis de união, nem em conexão com eles, para não produzir confusão com a bênção do sacramento do matrimônio", diz um trecho.

A marca do atual pontífice está no corpo do texto. Nele, o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o cardeal Víctor Manuel Fernández, também argentino, afirma que a declaração visa "ampliar e enriquecer" a compreensão que se tem da bênção por meio de uma reflexão teológica "baseada na visão pastoral do papa Francisco".

Trata-se da primeira vez que a Igreja Católica abre caminho para a bênção a casais do mesmo sexo. O tema gera tensão devido à forte oposição da ala conservadora da instituição religiosa, especialmente aquela baseada nos Estados Unidos, já muito crítica a Francisco.

Ao considerar a concessão de bênçãos aos que não vivem segundo as normas da doutrina moral cristã, o documento sinaliza que elas devem ser entendidas como atos de devoção e que quem as solicita "não deve ser obrigado a ter perfeição moral prévia" para recebê-las.

É um movimento que amplia a chamada "cidadania religiosa" dos LGBTQIA+, diz Jeferson Batista, pesquisador na área de direitos humanos e cristianismo e doutorando pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). O conceito se refere à igualdade de acesso pleno a direitos dentro do âmbito religioso —neste caso, o catolicismo.

Ainda assim, salienta, a medida "mantém a hierarquia sexual e de gênero" na instituição ao não avançar no casamento gay.

O pesquisador avalia que Francisco tem sido mais célere nos passos institucionais que dá em relação à comunidade LGBT+ e que o impacto da medida anunciada nesta segunda-feira será histórico ao "tirar das sombras" algo que já ocorria. Apesar de a união de casais do mesmo sexo não ser reconhecida pela Santa Sé, há alguns padres que já os abençoavam, principalmente em países como a Alemanha.

"Mesmo no Brasil esses atos já acontecem. Ocorre que ou não eram públicos ou eram conduzidos por lideranças católicas não ordenadas."

A declaração desta segunda ocorre seis semanas após a conclusão do Sínodo dos Bispos, uma reunião episcopal de especialistas que serve de mecanismo de consulta do papa e que tem como escopo o futuro da igreja. Também participaram desta edição mulheres e leigos que, entre outros temas, debateram como se aproximar de grupos marginalizados pela Igreja, como divorciados em segundo casamento e, claro, pessoas LGBT+.

É também por isso que, assim como o pesquisador Jeferson Batista, o professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Rodrigo Toniol afirma que o documento divulgado na segundo resulta de um processo feito "de baixo para cima". "É, afinal, fruto da demanda crescente das paróquias locais, articuladas em congregações muitas vezes sensíveis à causa."

"Essa declaração amplia a possibilidade do reconhecimento da instituição família a partir de novos arranjos", segue Toniol.

Em outubro, cinco cardeais conservadores pediram ao papa que reafirmasse a doutrina católica tradicional sobre casais homoafetivos, negando a eles o direito à bênção. Na ocasião, o Vaticano divulgou a resposta de Francisco, que se limitava a dizer que as bênçãos nestes casos eram "uma possibilidade". Antes, em 2021, uma outra decisão da instituição se opôs ao ato no caso de uniões homoafetivas sob o argumento de que "não se pode abençoar o pecado".

Também naquele ano, o Vaticano reiterou a opinião oficial de que a homossexualidade é um "pecado" e de que casais do mesmo sexo não podem receber o sacramento do matrimônio. À época, fiéis manifestaram frustração pela expectativa de que, sob Francisco, a instituição se tornaria mais inclusiva.

Desde sua eleição em 2013, o argentino, primeiro papa latino-americano da história e defensor de uma igreja "aberta a todos", tem despertado críticas dos conservadores, especialmente ao limitar o uso da missa em latim em 2021.

O papa também foi alvo da ala mais conservadora quando defendeu que o atual presidente dos EUA, Joe Biden, seguisse recebendo a comunhão a despeito de sua defesa pública pelo direito ao aborto.

Mais recentemente, no final de outubro, a Igreja abriu as portas do batismo para as pessoas trans. Respondendo a questões enviadas pelo bispo italiano José Negri, que lidera a diocese de Santo Amaro, em São Paulo, o Dicastério para a Doutrina da Fé afirmou que pessoas transexuais, incluindo aquelas submetidas a tratamento com hormônios e as que passaram por procedimentos de redesignação sexual, podem ser batizadas.

A mesma resposta dizia que filhos de casais de pessoas do mesmo sexo, mesmo aqueles gerados por barriga solidária, também podem ser batizados —"desde que sejam educados na fé católica dali em diante". Além disso, a resposta de três páginas a seis perguntas enviadas pelo bispo afirmava que pessoas trans podem ser padrinhos e madrinhas de um batizado, bem como testemunhas de um casamento.

Um sucessor de Francisco mais conservador poderia retroceder nessas medidas? Segundo Rodrigo Toniol, seria muito difícil um recuo, tendo em vista que há o "dogma da infalibilidade papal", segundo o qual, ainda que não seja um ser perfeito, um pontífice não erra quando se pronuncia sobre temas relacionados à fé.

"Significa que qualquer coisa que o papa faça é uma verdade, com caráter perpétuo. Um sucessor poderia até questionar as medidas, mas com a declaração, o papa coloca uma carta na manga da comunidade LGBT+. Praticamente não há como retroceder."

Medidas de Francisco relacionadas à comunidade LGBTQIA+

  1. 'Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem sou eu para julgá-la?'

    Pouco após ser eleito papa, em 2013, deu a declaração mais ousada de um papa sobre o assunto até então

  2. Proíbe bênção a união gay chama homossexualidade de pecado

    Anos depois, em 2021, porém, chancela documento do Vaticano considerado retrocesso pelos fiéis LGBT+

  3. 'Homossexualidade não é crime'

    Em 2023, defende ação para descriminalizar pessoas LGBTQIA+, mas reforça posição doutrinária sobre pecado

  4. Pessoas trans e filhos de casais gay podem ser batizados

    Também sob sua chancela, Vaticano diz a bispo do Brasil que transexuais e transgêneros podem ser batizados, assim como podem ser padrinhos, madrinhas e testemunhas de casamentos

  5. Aprova bênção a casais do mesmo sexo

    Contrariando ação de 2021, em 2023 declara que é autorizada a concessão de bênçãos a casais homoafetivos

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