Descrição de chapéu Todas guerra israel-hamas

Precisei voltar a explicar que não sou terrorista, diz influenciadora muçulmana

Neta de um palestino, a pedagoga Carima Orra fala sobre a guerra para mais de 200 mil seguidores em suas redes sociais

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São Paulo

Quando o grupo terrorista Hamas atacou o sul de Israel no dia 7 de outubro, a pedagoga e influencer muçulmana Carima Orra, 30, interrompeu as publicações sobre moda, viagens e educação que normalmente dominam o feed de seu perfil no Instagram, onde tem mais de 200 mil seguidores, para transmitir o seu ponto de vista sobre a história da região.

Não era a primeira vez que ela abordava o tema naquele espaço. Mesmo assim, após fazer a primeira publicação sobre o conflito, sua impressão foi de ter retornado à "estaca zero" após dez anos trabalhando com redes sociais. "Voltei a explicar para o mundo por que eu não sou terrorista", conta ela.

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Carima Orra, 30, em manifestação por cessar-fogo na guerra que se desenrola na Faixa de Gaza - Acervo pessoal

O ataque pôs um holofote na disputa que se desenrola no Oriente Médio há décadas e introduziu para muitos brasileiros a questão palestina. Mas, na vida de Carima, o assunto está presente desde quando ela era criança e esperava seu avô voltar da Cisjordânia com histórias da terra natal dele.

A influenciadora conta que, nascido em Silwad, perto de Ramallah, Abdul Kader veio para o Brasil dois anos após o que ficou conhecido como nakba. A palavra em árabe para "catástrofe" ou "desastre" dá nome ao êxodo de cerca de 700 mil palestinos da área antes conhecida como Palestina no fim da década de 1940, quando houve a partilha do território que atualmente abriga Israel.

"Quando ele chegava, todos iam recebê-lo e fazer um jantar para ouvir suas histórias", diz a pedagoga. "Ele sempre falava sobre a Palestina e contava como lá era bonito, nunca falava das coisas ruins. A gente via que a alegria de conseguir retornar para aquele lugar era tão grande que ele só falava de coisas boas."

Foi de uma dessas viagens que seu avô trouxe seu primeiro hijab, o véu islâmico. "São várias as memórias que eu posso relatar do meu avô. É tudo muito afetivo para mim", afirma.

Assim, conta Carima, foi natural que ela intensificasse a produção de conteúdo sobre a causa palestina após o início da guerra.

Para isso, ela acompanha jornais israelenses e fotógrafos que estão na Faixa de Gaza, onde as hostilidades já mataram mais de 21 mil pessoas em pouco mais de dois meses, segundo as autoridades de saúde locais, ligadas ao Hamas —de acordo com o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês), 2023 foi ano mais mortal para palestinos desde que a agência começou a registrar os óbitos na região, em 2005.

Entre os jornalistas palestinos que estão cobrindo a guerra, Carima cita Motaz Azaiza, que ficou conhecido nas últimas semanas por mostrar quase em tempo real em seu Instagram imagens chocantes de vítimas dos bombardeios e das ruínas em Gaza.

"É um filme de terror", define ela. Apesar do impacto das cenas, a influenciadora diz que não se poupa de vê-las. "Quando penso que estou cansada, lembro que eles não têm descanso. Eu tenho essa plataforma; do que vale ela se eu não a usar para o bem, para aquilo que eu acredito?", pergunta.

Essa convicção já respingou em sua vida profissional. Se entre novembro e outubro do ano passado ela foi para cerca de 20 eventos de marcas e recusou diversos convites por falta de tempo, este fim de ano está muito mais parado. "Nem acredito que seja por preconceito", diz ela. "Acho que estão esperando o assunto adormecer para depois voltarem a falar comigo, por não saber como os outros vão lidar."

A influenciadora viu mudanças também no número de seguidores. Ela conta que cerca de 8.000 pessoas deixaram de acompanhar seu perfil no Instagram no início da guerra, embora posteriormente ela tenha recuperado a audiência, que foi de 223 mil para 227 mil seguidores em dois meses.

"Hoje, depois de ter recebido 'unfollow' de marcas que me 'recrutavam' para ter acesso à 'representatividade' e ao 'respeito à diversidade', decidi fazer este vídeo sobre você ser a sua verdade de forma mais autêntica", escreveu ela na legenda de uma publicação, uma semana depois do início da guerra. "Ainda falta muita educação para percebermos que o grande desafio da humanidade é a tolerância e o respeito."

Além de atuar nas redes sociais, Carima vende dois cursos sobre educação, outro tema constante nas suas redes e que ela transpõe para o conflito. "As crianças em Gaza estão tendo uma formação totalmente desproporcional ao de uma criança saudável", diz a pedagoga, para quem os bombardeios colocam a região em uma espiral de violência e alimentam o grupo terrorista. "O maior incentivador do Hamas acaba sendo o próprio Estado de Israel."

A influenciadora lamenta o que considera uma assimetria no tratamento direcionado aos ataques que fizeram cerca de 1.200 vítimas e 240 reféns no sul de Israel e a ofensiva de Tel Aviv no território palestino. "Eu condeno o que aconteceu no dia 7 de outubro, mas, ao mesmo tempo, quero que o mundo condene o que Israel está fazendo desde 1948", diz. "Por que Israel agora está se defendendo e, quando foi o Hamas [que atacou], era terrorismo, sendo que a gente está falando de morte de crianças dos dois lados?"

Em um horizonte mais próximo, ela vê como prioridade um cessar-fogo. No longo prazo, defende uma solução de dois Estados com a criação de uma nação palestina, mesmo sem achar essa a saída mais justa.

"Se eu falar para você que acho certa uma divisão de dois Estados, não estaria honrando tudo o que meu avô e seus irmãos me passaram, além das mortes de nossos familiares", diz Carima. "Mas agora, obviamente, eu acho que criar dois Estados seria, pelo menos, respirar."

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