Entenda o que é a 14ª Emenda, usada para tentar barrar Trump de concorrer

Texto elaborado no século 19, que visava impedir confederados de ocupar cargos públicos, gera divergências entre juristas

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Washington

Nas últimas semanas, eleitores e organizações sociais em diversos estados americanos entraram com ações pedindo que o ex-presidente Donald Trump seja impedido de participar das primárias por ter supostamente violado uma cláusula da Constituição sobre insurreição.

No Colorado e no Maine, a estratégia foi bem-sucedida, enquanto outros 20 estados já arquivaram o pedido. Há ainda 13 em que a ação está pendente de análise. Novos pedidos continuam a ser protocolados.

A divergência de decisões não é fortuita: a base jurídica dos pedidos para barrar Trump da eleição é uma emenda incluída na Constituição em 1868, cujo objetivo era impedir que confederados (como são chamados os que lutaram pela secessão dos estados do sul e defendiam a manutenção do sistema escravocrata) ocupassem cargos públicos após sua derrota na Guerra Civil Americana (1861-1865).

A redação reflete o contexto histórico em que foi escrita, e sua aplicação à situação de Trump gera divergências entre juristas. A defesa do ex-presidente recorreu à Suprema Corte contra a decisão do Colorado, e a instância máxima da Justiça dos EUA aceitou decidir sobre o caso.

Com isso, um tribunal do Maine determinou em 17 de janeiro que o estado deve aguardar a decisão do Supremo sobre o recurso de Trump antes de reavaliar a decisão estadual de proibir Trump nas primárias. Diferentemente do Colorado, no Maine essa decisão não foi tomada por juízes, mas sim pela secretária do estado, uma democrata.

Entenda o que, afinal, diz a 14ª Emenda e as divergências sobre ela.

Apoiadores de Trump invadem o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021 - Stephanie Keith - 6.jan.2021/Reuters

O que diz a Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição

A emenda veda quem já tenha sido membro do Legislativo (federal e estaduais) e do funcionalismo público (federal e estaduais) de se tornar "senador ou representante no Congresso, eleitor de Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado se tiver se envolvido em "insurreição ou rebelião" contra a Constituição americana, o que abrange ter prestado ajuda ou apoio "aos inimigos dela".

Há uma ressalva: a limitação pode ser removida para um indivíduo se dois terços do Senado e da Câmara votarem favoravelmente.

Nenhuma pessoa poderá ser senador ou representante no Congresso, eleitor de Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado, que, tendo anteriormente prestado juramento como membro do Congresso, ou como funcionário dos Estados Unidos, ou como membro de qualquer legislatura estadual, ou como funcionário executivo ou judicial de qualquer Estado, para apoiar a Constituição dos Estados Unidos, tenha se envolvido em insurreição ou rebelião contra a mesma, ou tenha prestado ajuda ou apoio aos inimigos dela. Mas o Congresso pode, por votação de dois terços de cada Casa, remover tal incapacidade.

Constituição dos EUA

Seção 3 da 14ª Emenda

Problema 1: texto não cita presidente

O texto, considerado vago, responde ao contexto da época, e sua interpretação hoje é motivo de divergência entre juristas. Um problema básico é que a redação não elenca explicitamente o cargo de presidente.

Como Trump nunca foi membro do Legislativo, a única forma de ele ser enquadrado como alguém que já jurou defender a Constituição anteriormente é se o presidente for entendido como um funcionário público. O juiz de primeira instância que negou o pedido para barrar o republicano no Colorado, por exemplo, entendeu que isso não é verdade.

De acordo com um relatório feito pela assessoria de pesquisas do Congresso no ano passado, a questão chegou a passar pela cabeça dos deputados quando discutiram a redação da seção 3.

Durante o debate, um senador questionou por que os cargos de presidente e vice-presidente haviam sido excluídos do texto, o que abriria caminho para um ex-confederado ocupá-los. Outro senador respondeu que essa omissão era irrelevante pois essas posições estavam cobertas pelo trecho "qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos".

O problema é que essa parte não aparece quando são listados os cargos previamente ocupados por um insurrecto, uma das condições para que a proibição seja acionada.

Problema 2: texto não define o que é insurreição

O segundo grande problema da Seção 3 é que ela não define o que é insurreição, o que dá espaço para questionamentos se a invasão do Capitólio pode ser enquadrada como tal.

O parecer do Congresso de 2022 cita outras instrumentos jurídicos, como o Ato de Insurreição, de 1807, que ajudam a delimitar o entendimento –indicando que o 6 de Janeiro passa nessa régua.

Problema 3: Trump cometeu insurreição?

Finalmente, o terceiro problema é se Trump participou da insurreição ou apoiou os insurrectos. A resposta poderia ser mais fácil caso ele tivesse sido condenado por insurreição ou ao menos acusado do crime –o que chegou a ser recomendado pelo Comitê da Câmara que o investigou. Mas a sugestão não foi acatada pelo Departamento de Justiça ao apresentar a denúncia formal contra o ex-presidente.

Uma condenação na Justiça não era necessária para que a Seção 3 fosse aplicada aos ex-confederados. Por isso, formalmente, Trump poderia ser enquadrado mesmo sem uma sentença nesse sentido. No entanto, isso implica que a decisão sobre o envolvimento do ex-presidente na insurreição vai caber à Justiça.

Os outros processos contra Trump e a Suprema Corte

Além dos questionamentos sobre sua elegibilidade com base na emenda sobre insurreição, Trump é alvo de quatro processos criminais, todos em tramitação.

O primeiro trata de supostos pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels na campanha de 2016. O segundo o acusa de levar ilegalmente consigo documentos sigilosos do governo americano após deixar a Casa Branca.

Um terceiro, considerado o de maior fôlego, coloca Trump no banco dos réus por conspirar contra os EUA na tentativa de reverter sua derrota em 2020, quando alegou, sem provas, fraude eleitoral, motivando a invasão do Capitólio.

Por último, há um processo na Justiça da Geórgia em que ele é acusado de interferir na eleição estadual com base em uma lei usada historicamente contra a máfia.

A rigor, a legislação americana não impede ninguém que seja alvo de processos, ou mesmo que tenha sido condenado e preso, de concorrer à Presidência. Não há um equivalente à Lei da Ficha Limpa brasileira nos EUA.

No entanto, há muitas divergências se Trump pode ser empossado como presidente caso seja condenado –um problema inédito e não antecipado pela legislação americana.

Por isso, desde que oficializou sua pretensão de voltar ao cargo, havia poucas dúvidas de que o imbróglio chegaria, mais cedo ou mais tarde, à Suprema Corte.

Em 11 de dezembro, o conselheiro especial do Departamento de Justiça Jack Smith, por trás de dois dos quatro processos criminais contra Trump, fez um pedido inusual aos juízes: pular uma etapa do circuito de apelação, manifestando-se sobre um recurso ainda em análise por uma instância inferior.

A Suprema Corte, no entanto, rejeitou o pedido de Smith, mas é apenas uma questão de tempo para que o caso chegue novamente a ela pela rota regular. A questão trata da imunidade presidencial de Trump, que, segundo alega sua defesa, impede que ele seja imputado de crimes supostamente cometidos enquanto estava no cargo. Isso abrangeria as acusações de tentativa de reverter a derrota para Biden.

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