Metade da população global tem eleições em ano de democracia à prova

Autoritarismo, guerras, pressões externas e fragmentação interna compõem cenário de pleitos cruciais pelo mundo

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Boa Vista

O ano de 2024 terá cerca de metade da população do planeta votando em nível nacional ou regional, mas o mundo está longe de experimentar uma festa da democracia. Esse cenário global convive com a sombra do autoritarismo, mesmo em territórios democráticos, e com guerras ditando o debate público.

São 31 pleitos com data marcada, entre eleições para a Presidência e o Legislativo, além do caso do Parlamento da União Europeia —este leva às urnas a população de seus 27 Estados-membros. Há ainda outras 27 eleições previstas para o ano, ainda sem dia confirmado.

Dos dez países mais populosos do mundo, só China, Nigéria e Brasil não terão pleitos federais neste ano.

Mulher vota nas eleições gerais no Butão, no início do ano, em Timbu, capital do país
Mulher vota nas eleições gerais no Butão, no início do ano, em Timbu, capital do país - Money Sharma - 9.jan.2024/AFP

Em alguns casos, como Rússia e Bangladesh, a disputa é amplamente considerada de fachada ou boicotada por rivais do governo; em outros, como na Índia e no Paquistão, a oposição é censurada e critica o controle institucional sobre os meios de comunicação. Há ainda pleitos postergados ou sem data definida em países sob ditaduras, casos de Venezuela e Mali.

Taiwan foi a primeira eleição a atrair os holofotes, e não por ameaças internas. No último dia 13, Lai Ching-te foi escolhido como o novo presidente da ilha que simboliza o estado de conflito latente entre China e Estados Unidos. O eleito, um defensor da independência de Taipé, é visto pelo regime chinês como "sério perigo" para a região —Pequim considera Taiwan uma província rebelde e parte inalienável de seu território.

Do outro lado da contenda está a maior economia do mundo e terceira mais populosa, cuja eleição deste ano é incontestavelmente a mais importante do ano. Iniciadas as primárias, Donald Trump já mostra que deve ser o adversário de Joe Biden, em reedição do pleito de 2020. Mas o cenário político, ainda muito polarizado, é ainda mais complexo do que naquele ano.

Ronda a campanha o fantasma da invasão do Congresso americano, em 6 de janeiro de 2021. A tentativa da turba de apoiadores de Trump, insuflada pelo republicano, de impedir a certificação da vitória de Biden deu mostras do quanto o empresário estaria disposto a subverter o processo eleitoral.

O episódio resultou em centenas de participantes condenados e se transformou em um dos quatro processos criminais pelos quais Trump responde e que colocam em dúvida o exercício de um eventual segundo mandato seu em caso de condenação e eventual vitória. Pesam ainda ações, a serem julgadas pela Suprema Corte, que tentam impedir o empresário de concorrer com base uma em emenda controversa da Constituição.

A despeito dos processos, Trump continua popular, e muitas das pesquisas sugerem sua vitória caso ele de fato confronte Biden em novembro. Mas como um líder que desdenha de instituições democráticas tão abertamente, a ponto de instigar apoiadores a romperem com a ordem democrática, segue com apoio suficiente para voltar ao poder?

Segundo Thomás Zicman de Barros, pesquisador da Universidade do Minho (Portugal), a precarização do trabalho, a dissolução das formas tradicionais da vida social, as transformações tecnológicas e uma economia cada vez mais internacional que tira poder dos governos de aplicar agendas sociais formam o caldo em que florescem líderes como Trump.

"Tudo isso cria uma sociedade de massas, cada vez mais individualizada, em que as pessoas estão precarizadas e carecem de vínculos de sociabilidade. A massa é um grupo desorganizado e que pode ser organizado por lideranças eventualmente autoritárias, com promessas nem sempre verdadeiras ou factíveis", diz o pesquisador, um dos autores do livro "Do que Falamos quando Falamos de Populismo" (Companhia das Letras, 2022).

"Autoritários de extrema direita conseguiram ser porta-vozes de um sofrimento social bastante real de pessoas em condições econômicas absolutamente degradantes. [A crise econômica de] 2008 foi uma enxurrada para o mundo", afirma Marina Slhessarenko, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo).

A avaliação encontra eco no crescimento de partidos da direita radical na Europa que se sustentam com discursos virulentos semelhantes ao de Trump em temas como migração e o establishment político.

Em análise sobre as eleições para o Parlamento da União Europeia, o think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, em inglês) prevê que o grupo Identidade e Democracia, composto por legendas de direita radical, em geral contrárias a uma maior integração europeia, será a terceira maior força do Parlamento Europeu.

Estão nesse grupo siglas como a populista Alternativa para a Alemanha (AfD), recentemente envolvida em polêmicas com facções neonazistas, e os ultradireitistas Reunião Nacional, na França, e Partido pela Liberdade, vencedor das eleições na Holanda no fim do ano passado.

O resultado desse aumento de popularidade e ganho de espaço político da direita radical não deságua necessariamente na dissolução de blocos como a União Europeia, mas normaliza temas caros a esse grupo. Zicman de Barros lembra da aprovação recente de dura lei de imigração na França com o apoio da ultradireita e de ministros do governo Macron admitindo a inconstitucionalidade de partes do texto.

A Índia, com seu 1,4 bilhão de habitantes, também vai às urnas com ameaças autoritárias à mesa. Em dez anos de governo de Narendra Modi, o país experimenta crescimento econômico e redução da extrema pobreza, por um lado, mas vê queda nos índices de liberdade de imprensa e o avanço de uma agenda nacionalista hindu do premiê e de seu partido que marginaliza minorias religiosas.

Nova Déli é vista como uma autocracia eleitoral pelo V-Dem, renomado instituto sueco que classifica regimes a partir de índices que não levam em conta apenas a existência ou não de eleições. Uma autocracia eleitoral, segundo o instituto, tem eleições para o Executivo, mas níveis insuficientes de requisitos fundamentais para a democracia, como liberdade de expressão e de associação e pleitos justos.

Essa é a mesma classificação dada à Rússia, onde Vladimir Putin deve comemorar 24 anos à frente do Kremlin e estender seu controle por mais seis em meio à Guerra da Ucrânia —o país vizinho, em tese, também tem pleito marcado para o ano, mas está sob lei marcial, que veta eleições.

"A Rússia é a grande exportadora de tecnologias autoritárias e tem sido copiada em alguns lugares, como a Hungria", diz Slhessarenko, do Cebrap. Moscou limita drasticamente a ação de jornalistas e o financiamento de organizações da sociedade civil e persegue opositores.

Também simbólica pelo autoritarismo que carrega é a eleição em El Salvador, no próximo sábado (4). Popular em seu país e exemplo de político linha-dura na América Latina, Nayib Bukele neutralizou contrapesos e pode consolidar a erosão da democracia no país se permanecer no cargo, apesar de veto constitucional à reeleição.


Eleições-chave

Janeiro

Taiwan
Pleito realizado no último dia 13 elegeu Lai Ching-te, visto como ‘sério perigo’ pela China por sua posição pró-independência da ilha, cuja soberania Pequim não aceita negociar

Fevereiro

El Salvador
Símbolo para a direita latino-americana, Nayib Bukele neutralizou contrapesos e busca reeleição, apesar de veto constitucional

Paquistão
Ex-premiê Imran Khan, baleado, acusado de corrupção e preso desde que deixou o cargo, ainda é o líder político mais popular

Indonésia
Três candidatos disputam para substituir o popular e reeleito presidente Joko Widodo no quarto país mais populoso do mundo

Março

Rússia
No poder desde 1999, Vladimir Putin deve garantir mais seis anos no Kremlin em meio à Guerra da Ucrânia

Novembro

Estados Unidos
Donald Trump deve reeditar duelo com Joe Biden em meio a processos criminais, polarização e crise de legitimidade política no país

Data a definir

Índia
Na maior democracia do mundo, o premiê Narendra Modi é o favorito para levar seu projeto de nacionalismo hindu ao 3º mandato; pleito deve ocorrer em abril e maio

Reino Unido
Pesquisas de opinião colocam à frente o Partido Trabalhista, que pode desbancar os conservadores e voltar ao poder após 14 anos; premiê Rishi Sunak, que enfrenta baixa popularidade, deve convocar o pleito no segundo semestre

Venezuela
O ditador Nicolás Maduro afirma que haverá eleições, mas não define data e persegue opositores; os principais nomes do antichavismo, por ora, estão impedidos de concorrer porque o órgão eleitoral, dominado pelo regime, inabilitou suas candidaturas

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