Bukele coroa erosão democrática em El Salvador com corrida por reeleição

Líder do país centro-americano neutralizou contrapesos e reviveu concentração de poder e autoritarismo

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São Paulo

O clima de medo não é novo, mas se espraia em El Salvador e chega a pesquisadores que, convidados a analisar o cenário deste pequeno país centro-americano, preferem declinar por temerem que suas opiniões virem munição para perseguições do governo —como ocorreu ao longo da produção desta reportagem.

A tensão no país liderado por Nayib Bukele e sob estado de exceção há 15 meses aumenta à medida que o presidente avança sobre instituições democráticas. Uma das últimas ofensivas foi oficializada no último dia 10, quando Bukele registrou sua pré-candidatura para concorrer novamente à Presidência, embora a Constituição local vete reeleição.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tira selfie com apoiador durante evento em Nahuizalco - José Cabezas - 7.set.22/Reuters

Um dos temores de um pesquisador que, contatado pela Folha, preferiu não comentar e tampouco compartilhar seu nome na reportagem, é estar com o celular hackeado. Entre 2020 e 2021, aparelhos de ao menos 35 jornalistas do país foram espionados, de acordo com pesquisa da Universidade de Toronto.

A segunda fonte de preocupação é ser alvo de perseguição com base em um trecho do Código Penal reformado em março passado para impor pena de prisão de 15 anos a quem atrapalhar registros de candidaturas. O texto da legislação é amplo o suficiente para que críticos se sintam intimidados ao se manifestar.

Em 2024, Bukele terá a oportunidade de testar sua popularidade, uma das mais altas entre os líderes das Américas. Sua derrota é vista como improvável por analistas, e sua vitória, um marco da era posterior à guerra civil, encerrada em 1992.

Quando foi eleito em 2019, aos 37 anos, Bukele deu fim à dicotomia partidária que durante quase três décadas simbolizou os dois lados do conflito —a Arena (Aliança Republicana Nacionalista), partido de direita fundado por um militar, e a FMLN (Frente Farabundo Martí para Libertação Nacional), legenda dos guerrilheiros de esquerda que deixaram as armas após o acordo dos anos 1990.

Uma eventual reeleição no próximo ano coroaria o colapso da democracia construída pelos salvadorenhos nesse período, de acordo com especialistas. "Estamos no cenário em que estava El Salvador antes da guerra civil quando o assunto é autoritarismo e concentração de poder", diz o professor de ciência política na UCA (Universidade Centro-Americana) Carlos Monterrosa.

"El Salvador manteve uma constante autoritária com matizes democráticos", diz ele. As eleições deixaram de ser fraudadas, mas havia uma falta de transparência crônica em instituições como a Procuradoria-Geral da República, que lançava investigações sem um sistema de controle e prestação de contas, afirma.

"Bukele trouxe esse componente autoritário à superfície."

A entrada do hoje presidente no cenário político local tem início em 2011, quando Bukele, então publicitário, busca a prefeitura da pequena Nuevo Cuscatlán, de 7.000 habitantes. Sua empreitada começa na atual rival FMLN, talvez por influência do seu pai, um homem de esquerda.

A campanha de estreia teve poucas referências à identidade do partido que lhe servia de plataforma. A fórmula atraiu eleitores de diferentes matizes ideológicos e catapultou o político para, em 2015, assumir a prefeitura da capital San Salvador. Durante o mandato, Bukele rompeu com a FMLN e se lançou à Presidência com um partido de aluguel, o Gana, antes de fundar a sua própria legenda: Nuevas Ideas.

Desde que tomou posse, o presidente se empenha em derrubar os contrapesos que controlam seu poder.

Quando, no início de 2020, os deputados rechaçaram um empréstimo de US$ 109 milhões que financiaria um plano de segurança, Bukele entrou na Assembleia ao lado de policiais e soldados, sentou na cadeira do presidente do Legislativo e ordenou o início da sessão.

Naquele momento, ele contava com 20 correligionários entre os 84 deputados, e a estratégia não funcionou. Agora, porém, o rompante não seria necessário: um ano depois do episódio, 56 membros do Nuevas Ideas foram eleitos deputados, enquanto os outrora poderosos Arena e FMLN não conseguiram nem 20% das cadeiras.

Bukele também se voltou ao Judiciário. Em maio de 2021, a Assembleia, já com uma maioria de partidários do presidente, destituiu os juízes titulares e suplentes da Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça e aprovou a saída do então procurador-geral da República —meses depois, o órgão autorizou a reeleição no país.

Mais recentemente, o presidente decidiu alterar a estrutura administrativa do país. No início de junho, usou a cadeia nacional de rádio e TV para anunciar um pacote de propostas que diminuirá os assentos legislativos de 84 para 60 e o número de municípios no país de 262 para 44. As mudanças passaram sem surpresas na Assembleia governista apenas duas semanas depois.

Análise do doutorando em Harvard Manuel Meléndez-Sánchez mostra que, se as eleições de 2021 tivessem sido realizadas com a nova configuração, o resultado seria muito melhor para o partido de Bukele. Naquele ano, o Nuevas Ideas levou 152 municípios, ou 58% das prefeituras. Os mesmos resultados agora fariam a legenda emplacar 41 dos 44 prefeitos —93% das cadeiras em jogo.

A última fronteira do presidente é a sociedade civil.

O autoritarismo já respinga em jornalistas, ONGs e movimentos sociais —em 2022, uma reforma no Código Penal instituiu pena de prisão àqueles que reproduzam mensagens de gangues, restringindo o trabalho de cobertura da violência. Em abril, o El Faro, um dos mais importantes jornais da América Central, anunciou que mudaria toda sua estrutura para a Costa Rica.

Para Meléndez-Sánchez, Bukele se sente mais confortável quando tem um inimigo claro. "É um governo que precisa estar em guerra. Primeiro foi a Assembleia Legislativa e o Judiciário. Quando Bukele toma essas instituições, o inimigo é a pandemia. Depois, são as gangues."

Por anos considerado o maior problema do país pela população, o crime organizado foi o alvo número um de Bukele. Sob o estado de exceção, El Salvador saiu do topo da lista de países com as maiores taxas de homicídio e passou a integrar o ranking dos que mais encarceram —sem resolver, porém, a violência. Transbordam denúncias de capturas de inocentes, tortura e maus-tratos.

O próximo inimigo do presidente, segundo Meléndez-Sánchez, deve ser a economia, que passa por uma piora em seus índices. "Se as coisas continuam como estão agora, Bukele vai acordar no primeiro dia de seu segundo governo com essa preocupação", afirma. Uma eventual queda de popularidade pela situação econômica, diz o pesquisador, pode ser o que falta para um endurecimento ainda maior do governo.

Monterrosa, da UCA, diz que a literatura aponta a segurança e a economia como as duas principais preocupações de líderes autoritários. "Por enquanto, a segurança está bem controlada. Mas a economia é diferente, porque depende de fatores externos."

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