Trump é maior problema para a Suprema Corte desde Bush em 2000

Entenda o que é a 14ª Emenda, as ações contra o nome de Trump na cédula e como funciona a análise pelos juízes

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Washington

As duas vitórias obtidas pela campanha iniciada em 32 estados para tirar o nome de Donald Trump das cédulas das primárias republicanas aumentaram a pressão sobre a Suprema Corte para que decida se, afinal, o ex-presidente é ou não elegível para um novo mandato.

Só nesta quarta-feira (3), por exemplo, um novo recurso foi apresentado à instância máxima da Justiça dos Estados Unidos contestando uma decisão do tribunal superior do Colorado que impedia o ex-presidente de concorrer pela indicação do Partido Republicano à Presidência nas primárias do estado. Ação similar havia sido impetrada em 27 de dezembro pela seção estadual da legenda.

O ex-presidente Donald Trump participa de julgamento em que é réu na sede da Suprema Corte de Nova York, em Manhattan - Mike Segar - 7.dez.23/Reuters

Foram protocoladas 36 ações, por organizações ou grupos de eleitores, em 32 dos 50 estados americanos nas últimas semanas. Os pedidos só puderam ser apresentados agora porque deveriam aguardar primeiro Trump se inscrever oficialmente nas primárias locais.

Até agora, apenas 2 estados —Maine, em 28 de dezembro, e já citado Colorado, no dia 19 do mesmo mês— barraram Trump, enquanto 17 negaram o pedido, sendo os mais recentes Michigan e Califórnia.

No caso do Maine, como a decisão de barrar o republicano foi tomada pela secretária de estado (posição eleita pelo Legislativo estadual que cuida de diversos departamentos, entre eles o eleitoral), o recurso teve ser apresentado primeiro para a Suprema Corte local, e só depois pode chegar à instância federal. Foi o que fizeram os advogados do ex-presidente também nesta quarta.

Se decidir responder a este e outros chamamentos de cortes estaduais, esta será a decisão de maior peso eleitoral –e provavelmente mais controversa– do tribunal desde que os seus magistrados confirmaram a vitória de George W. Bush sobre Al Gore na Flórida em 2000.

A estratégia de Trump vinha sendo protelar ao máximo que o tema chegasse à instância máxima da Justiça americana –no mundo ideal, isso ocorreria só depois de sua vitória e investidura com os privilégios do cargo de presidente. No outro campo, seus opositores tentam, via uma emenda quase esquecida da Constituição, minar esse plano.

As argumentações não são idênticas, mas, grosso modo, defendem que Trump seja retirado das primárias porque teria cometido insurreição por seu papel na invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, quando seus apoiadores tentaram impedir que o Congresso confirmasse a vitória de Joe Biden.

A base jurídica do pleito é a Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição, adotada em 1868, cujo objetivo era impedir que confederados (como são chamados os que lutaram pela secessão dos estados do sul) ocupassem cargos públicos após sua derrota na guerra civil americana.

A questão é tão politicamente espinhosa quanto urgente. Trump lidera com folga as primárias do partido e, nas simulações de disputa com Joe Biden, ora empata, ora vence o democrata. Barrá-lo, portanto, significa tirar da corrida o candidato mais forte, enquanto mantê-lo tem consequências incertas para a democracia americana.

No entanto, se a Suprema Corte se recusar a decidir sobre o assunto (alegando que seria uma prerrogativa do Legislativo, por exemplo), ou emitir uma sentença de escopo limitado, sem repercussão geral, isso pode levar ao caos em novembro, quando ocorre a eleição, com decisões contraditórias em diferentes estados, e depois, se Trump for eleito.

Na hipótese de uma maioria democrata ser alçada ao Congresso, por exemplo, ele poderia em teoria usar a 14ª Emenda para não confirmar a vitória do republicano.

Dos 9 juízes que compõem a Suprema Corte, localizada em Washington (DC), 3 foram apontados por Trump. Em termos ideológicos, 6 são considerados conservadores.

O que diz a Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição

A emenda veda quem já tenha sido membro do Legislativo (federal e estaduais) e do funcionalismo público (federal e estaduais) de se tornarem "senador ou representante no Congresso, eleitor de Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado" se tiverem se envolvido em "insurreição ou rebelião" contra a Constituição americana, o que abrange terem prestado ajuda ou apoio "aos inimigos dela".

Há uma ressalva: a limitação pode ser removida para um indivíduo se dois terços do Senado e da Câmara votarem favoravelmente.

Nenhuma pessoa poderá ser senador ou representante no Congresso, eleitor de Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado, que, tendo anteriormente prestado juramento como membro do Congresso, ou como funcionário dos Estados Unidos, ou como membro de qualquer legislatura estadual, ou como funcionário executivo ou judicial de qualquer Estado, para apoiar a Constituição dos Estados Unidos, tenha se envolvido em insurreição ou rebelião contra a mesma, ou tenha prestado ajuda ou apoio aos inimigos dela. Mas o Congresso pode, por votação de dois terços de cada Casa, remover tal incapacidade.

Constituição dos EUA

Seção 3 da 14ª Emenda

Os problemas para aplicar a 14ª Emenda a Trump

O texto, considerado vago, responde ao contexto da época, e sua interpretação hoje é motivo de divergência entre juristas. Um problema básico é que a redação não elenca explicitamente o cargo de presidente.

Como Trump nunca foi membro do Legislativo, a única forma de ele ser enquadrado como alguém que já jurou defender a Constituição anteriormente é se o presidente for entendido como um funcionário público. O juiz de primeira instância que negou o pedido para barrar o republicano no Colorado, por exemplo, entendeu que isso não é verdade.

De acordo com um relatório feito pela assessoria de pesquisas do Congresso no ano passado, a questão chegou a passar pela cabeça dos deputados quando discutiram a redação da seção 3.

Durante o debate, um senador questionou por que os cargos de presidente e vice-presidente haviam sido excluídos do texto, o que abriria caminho para um ex-confederado ocupá-los. Um outro senador respondeu que essa omissão era irrelevante pois essas posições estavam cobertas pelo trecho "qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos".

O problema é que essa parte não aparece quando são listados os cargos previamente ocupados por um insurrecto, uma das condições para que a proibição seja acionada.

O segundo grande problema da Seção 3 é que ela não define o que é insurreição, o que dá espaço para questionamentos se a invasão ao Capitólio pode ser enquadrada como tal. O parecer do Congresso de 2022 cita outras instrumentos jurídicos, como o Ato de Insurreição, de 1807, que ajudam a delimitar o entendimento –indicando que o 6 de janeiro passa nessa régua.

Finalmente, o terceiro problema é se Trump participou da insurreição ou apoiou os insurrectos. A resposta poderia ser mais fácil caso ele tivesse sido condenado por insurreição ou ao menos acusado do crime –o que chegou a ser recomendado pelo Comitê da Câmara que o investigou. Mas a sugestão não foi acatada pelo Departamento de Justiça ao apresentar a denúncia formal contra o ex-presidente.

Uma condenação na Justiça não era necessária para que a Seção 3 fosse aplicada aos ex-confederados, por isso, formalmente, Trump poderia ser enquadrado mesmo sem uma sentença nesse sentido. No entanto, isso implica que a decisão sobre o envolvimento do ex-presidente na insurreição vai caber à Justiça.

Como funciona a análise pela Suprema Corte dos EUA

Os problemas da Seção 3 da 14ª Emenda explicam as decisões divergentes pelos tribunais estaduais e a certeza de que a questão pararia, eventualmente, na Suprema Corte. A ação do Colorado foi apenas a primeira a chegar.

A instância máxima da Justiça americana, no entanto, não é obrigada a analisar o recurso. Como o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, milhares de pedidos chegam a ela todo o ano, e devem primeiro passar por um filtro de admissibilidade.

Segundo as regras da Suprema Corte, 4 dos 9 juízes que a compõem devem ser favoráveis à análise do recurso para que ele seja admitido —para que se conceda a petição de "certiorari", no juridiquês americano. Os critérios adotados são, em linhas gerais, necessidade de pacificar um entendimento após decisões conflitantes de instâncias inferiores, temas constitucionais de importância nacional ou com relevância para estabelecer um precedente.

Cerca de 1% dos recursos apresentados são aceitos para análise, ou de 100 a 150 dos mais de 7.000 pedidos recebidos anualmente. As reuniões ocorrem às sextas, e as decisões são divulgadas na segunda-feira seguinte.

Se a Suprema Corte aceitar analisar o recurso, a parte que entrou com o pedido tem um prazo para apresentar por escrito um resumo do caso. Recebido esse documento, é a vez de a outra parte apresentar sua versão, também por escrito.

Há depois uma segunda rodada para cada lado responder resumidamente as posições do outro. Se não estiver envolvido diretamente no caso, o governo americano, representado pelo "Solicitor General" (equivalente ao procurador-geral no sistema brasileiro), também pode apresentar sua posição por escrito. Entidades interessadas no tema podem pedir permissão à Corte para se manifestarem, o chamado "amicus curiae".

Encerrada essa fase, é agendada uma data para a apresentação das argumentações orais. O costume é que duas semanas de cada mês sejam reservadas para isso, com dois casos alocados por dia.

A audiência é pública e relativamente rápida: a dinâmica pós-pandemia é que cada parte tenha apenas dois minutos para apresentar sua fala inicial, seguida por um bloco de uma hora de perguntas e respostas (30 minutos para cada lado). Ao final, cada um dos nove juízes tem a chance de fazer uma última pergunta. As decisões são tomadas em reuniões fechadas realizadas, em geral, às quartas e sextas.

Os outros processos contra Trump e a Suprema Corte

Além dos questionamentos sobre sua elegibilidade com base na emenda sobre insurreição, Trump é alvo de quatro processos criminais, todos em tramitação.

O primeiro trata de supostos pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels na campanha de 2016. O segundo o acusa de levar ilegalmente consigo documentos sigilosos do governo americano após deixar a Casa Branca.

Um terceiro, considerado o de maior fôlego, coloca Trump no banco dos réus por conspirar contra os EUA na tentativa de reverter sua derrota em 2020, quando alegou, sem provas, fraude eleitoral, motivando a invasão ao Capitólio.

Por último, há um processo na Justiça da Geórgia em que ele é acusado de interferir na eleição estadual com base em uma lei usada historicamente contra a máfia.

A rigor, a legislação americana não impede ninguém que seja alvo de processos, ou mesmo que tenha sido condenado e preso, de concorrer à Presidência. Não há um equivalente à Lei da Ficha Limpa brasileira nos EUA.

No entanto, há muitas divergências se Trump pode ser empossado como presidente caso seja condenado –um problema inédito, e não antecipado, pela legislação americana.

Por isso, desde que oficializou sua pretensão de voltar ao cargo, havia poucas dúvidas de que o imbróglio chegaria, mais cedo ou mais tarde, à Suprema Corte.

Em 11 de dezembro, o conselheiro especial do Departamento de Justiça Jack Smith, por trás de dois dos quatro processos criminais contra Trump, fez um pedido inusual aos juízes: pular uma etapa do circuito de apelação, se manifestando sobre um recurso ainda em análise por uma instância inferior.

A Suprema Corte, no entanto, rejeitou o pedido de Smith, mas é apenas uma questão de tempo para que o caso chegue novamente a ela pela rota regular. A questão trata da imunidade presidencial de Trump, que, segundo alega sua defesa, impede que ele seja imputado de crimes supostamente cometidos enquanto estava no cargo. Isso abrangeria as acusações de tentativa de reverter a derrota para Biden.

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