Em encontro com Macron, Lula diz que não é obrigado a partilhar 'nervosismo' quanto à Guerra da Ucrânia

Reunião e almoço encerram viagem do líder europeu ao Brasil; presidentes assinaram acordos de cooperação

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Brasília

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou nesta quinta-feira (28), ao lado do presidente da França, Emmanuel Macron, que não é obrigado a compartilhar o mesmo "nervosismo" dos europeus quando o assunto é Guerra da Ucrânia.

"Estou a tantos mil quilômetros de distância da Ucrânia que não sou obrigado a ter o mesmo nervosismo que tem o povo francês, que está mais próximo, ou o alemão", disse o petista durante encontro dos dois chefes de Estado com a imprensa, no Palácio do Planalto.

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e da França, Emmanuel Macron, durante visita do francês ao Palácio do Planalto, em Brasília - Pedro Ladeira - 28.mar.23/Folhapress

Em seguida, ele voltou a defender negociações de paz para encerrar o conflito e, referindo-se à Ucrânia e à Rússia, disse que os "dois bicudos" vão precisar se entender.

"Aquela guerra só vai ter uma solução, que vai ser a paz. Em algum momento eles vão ter que sentar e chegar à conclusão de que não valeu a pena o que foi feito até agora: a destruição, os gastos, os investimentos em armas, que são muito maiores do que os investimentos para combater a fome, a desigualdade e a miséria", disse.

Tanto Lula quanto Macron já tentaram assumir posições de mediadores no conflito, sem sucesso. Suas visões sobre o tema se aproximam em alguns pontos, como a ideia de que não é possível alienar a Rússia de eventuais negociações —vários líderes defendem que Vladimir Putin não tem legitimidade nem sequer para isso e que seu lugar deveria ser atrás das grades.

Em outros, porém, elas se afastam. Lula costuma urgir pelo fim da guerra acima de tudo, tendo provocado celeuma ao sugerir que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, "não pode ter tudo" e insinuar que a situação da Crimeia, território anexado pelo Kremlin antes da guerra em curso, em 2014, mas cuja devolução é um dos pré-requisitos de Kiev para a paz, poderia ser discutida.

Macron, por sua vez, compartilha com seus vizinhos europeus a ideia de que a invasão da Ucrânia ameaça o continente como um todo, e chegou a dizer neste mês que não hesitaria em enviar tropas francesas para a linha de frente —"não haverá linhas vermelhas", foram as suas palavras.

Questionado por jornalistas sobre o que pensava sobre o Brasil convidar Putin para a cúpula de chefes de Estados do G20 no Rio de Janeiro, em novembro, o francês preferiu, em linha com o que fez no restante da viagem quando o tema era geopolítica, destacar as similaridades entre as posições de Brasília e Paris.

Ele contou que teve que encarar um dilema semelhante quando a França sediou a cúpula do G7, em 2019. Na época, a solução foi convidar Putin para uma reunião paralela, ocorrida dias antes do evento oficial. De todo modo, acrescentou o francês, o tema deveria ser abordado levando em conta "a liberdade de quem convida e o respeito de todos" do grupo. "Eu não tenho lição para dar a ninguém", declarou.

Hoje, porém, o russo não só sofre um processo de isolamento muito mais duro por parte da comunidade internacional, como é alvo de um mandado de prisão emitido pelo TPI (Tribunal Penal Internacional), sob acusação de crimes de guerra no conflito no Leste Europeu.

O Brasil é signatário do documento fundador do tribunal e, em tese, deveria cumprir suas ordens —no caso, prender Putin, que nega as acusações. Lula chegou a afirmar que o russo poderia vir ao G20 sem correr risco de ser preso, mas depois voltou atrás, dizendo que a decisão caberia à Justiça brasileira e que nem sabia da existência do TPI, apesar de evidências do contrário.

Também na quinta, Lula ofereceu um almoço para Macron no Palácio do Itamaraty. Antes, o francês foi recebido no Palácio do Planalto, em Brasília, com honrarias de chefe de Estado. Teve uma reunião bilateral com Lula e assinou acordos de cooperação. No fim da tarde, encontrou-se com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), antes de embarcar de volta à França.

A visita à capital federal encerrou uma viagem de três dias do francês pelo Brasil. Ele foi a Belém (PA), Itaguaí (RJ) e São Paulo (SP). Lula acompanhou-o nas duas primeiras cidades, além de Brasília.

Na primeira etapa da viagem, no Pará, Lula e Macron anunciaram um plano de investimentos em bioeconomia para a amazônia. A iniciativa pretende alavancar € 1 bilhão (cerca de R$ 5,3 bilhões) em recursos públicos e privados nos próximos quatro anos. O montante deve ser voltado tanto para a floresta amazônica em território brasileiro quanto para aquela que está na Guiana Francesa (território do país europeu).

Em Itaguaí, os dois presidentes defenderam a ampliação da cooperação militar entre seus países para que, juntos, atuem na manutenção da paz mundial.

Em São Paulo, Macron teve uma agenda extensa. Fez um discurso em um fórum econômico organizado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e seguiu para o campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP), na zona oeste da capital, onde participou da cerimônia de inauguração da unidade do Institut Pasteur de São Paulo.

Em seguida, o presidente da França foi ao Lycée Pasteur, na Vila Mariana, onde houve uma recepção para a comunidade francesa com chefs de cozinha renomados. No mesmo local, Macron participou de um coquetel com estudantes e jornalistas de seu país.

Mais tarde, participou de um jantar misterioso, restrito a convidados, no hotel Rosewood, um dos mais luxuosos da cidade, no bairro da Bela Vista (região central).

A viagem de Macron marca capítulo principal de uma aliança política pensada pelos dois chefes do Executivo como uma espécie de ponte entre os países ricos e o chamado Sul Global —uma parceria que começou a ser construída antes de mesmo de o petista iniciar seu terceiro mandato.

Macron é visto como aliado estratégico por Lula por duas razões: primeiro, porque ele o recebeu com honrarias no Palácio do Eliseu em novembro de 2021, quando o petista era a principal liderança de oposição contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O gesto foi calculado tanto para relançar Lula como ator de alcance global como para provocar o então chefe de Estado brasileiro, com quem o francês vinha acumulando atritos desde 2019.

Em segundo lugar, auxiliares de Lula consideram a França o país do G7 com a política externa mais independente. Aos olhos do Planalto, assim, Paris teria maior disposição para adotar iniciativas que não são teleguiadas pelos americanos.

Como exemplo, conselheiros do petista lembram que Macron já defendeu maior autonomia da Europa e argumentou que o bloco não deve necessariamente se alinhar às posições americanas no quadro atual da geopolítica.

Nesse sentido, o Palácio do Planalto vê o presidente francês como um líder que pode levar alguns dos temas caros aos países emergentes à mesa do G7. Macron, por sua vez, também enxerga em Lula um chefe de Estado capaz de atuar como intermediário entre os países ricos e as economias em desenvolvimento, de acordo com uma fonte da diplomacia francesa.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto afirmava incorretamente que a declaração de Lula sobre a Guerra da Ucrânia ocorreu depois do almoço oferecido a Emmanuel Macron no Itamaraty. A fala aconteceu antes, ainda no Palácio do Planalto.

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