Descrição de chapéu Afeganistão imigrantes

Brasil deve delegar a ONGs acolhida e indicação de vistos para afegãos

Críticos temem que entidades usem critérios religiosos ou sejam alvo de propina; política estava congelada havia 8 meses

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Buenos Aires

Quase oito meses após suspender a concessão de vistos de acolhida humanitária para afegãos que fogem da opressão do regime do Talibã, o governo brasileiro está prestes a reativá-la.

Em breve, um edital será aberto para selecionar ONGs que se comprometerão a acolher esses imigrantes e poderão indicar quais deles deveriam receber vistos. É o chamado modelo de "patrocínio comunitário", inédito no Brasil, mas comum nos Estados Unidos.

Migrantes afegãos acampados no Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, aguardavam em janeiro para serem transferidos a um abrigo
Migrantes afegãos acampados no Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, aguardavam em janeiro para serem transferidos a um abrigo - Lalo de Almeida/Folhapress

O projeto está sob a batuta do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, chefiado por Ricardo Lewandowski, e do Itamaraty, de Mauro Vieira. Mudanças na primeira pasta, com a saída de Flávio Dino rumo ao Supremo Tribunal Federal (STF) e uma dança de cadeiras interna, retardaram a implementação da nova política de vistos.

O congelamento da concessão dos vistos ocorreu após constatação do governo de que grande parte dos afegãos não permanecia no país após desembarcar no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, mas somente o usava como porta de entrada nas Américas para iniciar uma rota rumo aos EUA, muitas vezes perigosa.

É consenso entre os envolvidos na política migratória o diagnóstico de que a acolhida dada a esses imigrantes era insuficiente. Muitos deles passavam semanas vivendo no terminal de Guarulhos enquanto aguardavam vagas em abrigos. Outros, sem falar inglês ou português, não conseguiam se comunicar ou buscar reinserção profissional.

Brasília defende que a solução estaria em selecionar organizações que possam receber esse contingente, assegurando que elas ofertariam oportunidades de estudo, trabalho e moradia. E a concessão do visto estaria condicionada a direcionar os beneficiados às ONGs.

Sob esta nova política, afegãos não poderiam mais solicitar de maneira independente os vistos, como era feito até então. Eles teriam de entrar em contato com as entidades, que os indicariam para uma triagem do governo, ou então receberem recomendação de organizações reconhecidas que já atuam com o tema na Ásia Central, como a OIM, braço da ONU para migrações, ou o Acnur, que cuida de refugiados dentro das Nações Unidas.

O temor de diversas partes envolvidas no debate está na prioridade que organizações poderiam dar a grupos específicos de afegãos, como, por exemplo, os cristãos, minoria num país majoritariamente muçulmano. Ou, então, na oferta de propina a essas organizações para que indiquem os imigrantes que receberiam vistos —prática que já ocorreu nos últimos meses diante de muita desinformação sobre o tema.

Algumas das partes envolvidas dizem temer que, uma vez que o acesso ao visto não mais existirá para as pessoas quem não contam com esse patrocínio (ou apoio das ONGs), uma barreira socioeconômica passará a vigorar naturalmente, tornando restrita a acolhida.

Chefe do Departamento de Migrações em Brasília, Luana Medeiros diz que o governo está ciente dessas preocupações e fará um rígido monitoramento das ONGs. "Esse seria um programa piloto que quiçá gostaríamos de usar para outros grupos migratórios para corrigir brechas na política de acolhida humanitária", afirma.

Segundo Medeiros, outro objetivo é coibir redes de tráfico de migrantes que se aproveitavam da vulnerabilidade de afegãos para extorquir dinheiro deles e direcioná-los a rotas perigosas, como a de Darién, apelidada de selva da morte, entre a Colômbia e o Panamá.

Desde setembro de 2021, quando o Brasil começou sua política de concessão de vistos humanitários aos afegãos após os radicais do Talibã voltarem ao poder, 11.094 foram concedidos. O número de solicitações, porém, é muito maior, e gira em torno de 40 mil. Mas algumas nem sequer são consideradas, pois chegam sem nome e sem detalhes do caso. São apenas um pedido de socorro por email.

Nesse mesmo período, ao menos 3.515 afegãos deixaram o Brasil, a maioria pelo Acre, no município de Assis Brasil, ou pelo Amapá, em Oiapoque. São conhecidos pontos da fronteira onde migrantes iniciam a rota rumo ao norte. A cifra é subnotificada, dado o pouco controle de saídas na fronteira terrestre do país.

Afegãos que emigram ao Brasil estão, em sua maioria, no Irã ou no Paquistão, os primeiros países nos quais buscam refúgio. Pelo sistema anterior adotado pelo Brasil, que deve ser substituído em breve, eles tinham de pleitear a acolhida humanitária nas embaixadas do Brasil nas respectivas capitais, Teerã e Islamabad.

O termo técnico é reassentamento: transferir pessoas já refugiadas em um país para uma terceira nação que concorda em recebê-los.

Mas setores do governo envolvidos no tema se dizem preocupados com a possibilidade de o reassentamento contemplar afegãos que não necessariamente fugiam do Talibã. Há famílias vivendo há anos em nações vizinhas que não foram expulsas pelos extremistas.

Sob condição de anonimato, algumas organizações também envolvidas neste debate criticam essa limitação temporal de abarcar apenas pessoas que deixaram o Afeganistão após o retorno dos fundamentalistas, argumentando que isso restringe o direito ao refúgio para afegãos que igualmente poderiam estar em situação de perseguição.

A Defensoria Pública da União enviou recomendação ao Ministério da Justiça e ao Itamaraty para reavaliar o modelo de patrocínio pelas ONGs. Membros do Executivo argumentam que o governo agora só vai supervisionar um processo que já ocorria, pois os afegãos que conseguiam pleitear o visto eram justamente os que contavam com ajuda de entidades para apresentar a documentação correta.

Desde que o Talibã voltou ao poder em 2021, a já difícil situação afegã se agravou. A ONU calcula que cerca de 16 milhões dos 41 milhões de habitantes passam fome e que todas as províncias vivem algum nível de insegurança alimentar. O direito à educação feminina naufragou. Mais recentemente, enchentes mataram dezenas de pessoas e pioraram as condições de vida.

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