Descrição de chapéu
Alexa Salomão

Deuses circulam pelas cozinhas mesmo em tempos de iFood e fome

Não se iludam os descrentes, Vênus adoça o paladar, Marte anima todos os churrascos e Júpiter pede mais uma taça de vinho

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Alexa Salomão

É repórter especial em Brasília e foi editora de Mercado, é pós-graduada em Finanças pela UFRGS, com MBA pela FIA-FEA/USP.

Brasília

Chega a ser engraçado falar na simbologia dos alimentos em tempo de iFood e MasterChef. Nos sentimos genuinamente acalentados ao pedir a comida pelo aplicativo e nos emocionamos torcendo para ver quem vai terminar aquele prato que não podemos nem sentir o cheiro, quanto mais provar.

No entanto, me atrevo a dizer que essas modernidades, mesmo nos distanciando de nossas cozinhas, são provas de que ainda buscamos na comida a presença dos milenares. Deuses, espíritos da natureza, astros, a magia, seja lá o nome que já receberam, dão significado ao ato de caçar, cultivar e preparar os alimentos antes mesmo da invenção do fogo. Esse universo simbólico da alimentação ajudou, inclusive, a construir o arquétipo do cuidador, aquele que nutre e cura dentro da teoria do inconsciente coletivo do psiquiatra Carl Jung.

Mesa com taças de vinho
Vinhos no Sede 261, que venceu na categoria melhor bar de vinhos d'O Melhor de São Paulo - Keiny Andrade/Folhapress

Não precisamos de muito esforço para recuperar Vênus, planeta que representa a deusa do amor e da sedução, na primeira colherada em uma calda de chocolate. Marte, o deus da guerra e da virilidade, está em todos os churrascos, seja nas carnes ao ponto, seja nas malpassadas. Mesmo sendo a bebida do deus Baco, o vinho é associado à plenitude —e não raro aos exageros— de Júpiter, o planeta que simboliza abundância que sempre pede mais uma taça.

No século 16, o médico suíço Paracelso tentou dar um toque científico para tudo isso. Inspirado na crença de que cada planta é uma estrela na Terra, fez inúmeras correlações. Ao Sol, por exemplo, associou cereais ligados à vitalidade —trigo, milho, aveia, cevada, que constituem o centro da alimentação de inúmeros povos.

Porém, não apenas a fartura, mas também a fome permeia a mística imemorial dos alimentos. Uma lenda indígena diz que o deus Tupã criou o açaí nos braços de Iaçã, uma das mães que chorou por ter de sacrificar a filha para evitar que a aldeia morresse de fome por excesso de habitantes. Na China, entre as
lendas sobre a origem do arroz, conta-se que, durante uma grande fome, os habitantes da região de Sichuan enviaram pássaros aos deuses e receberam de volta os grãos brancos.

Os antigos também não nos deixam esquecer que a origem da abundância à mesa é uma só, a natureza.
Na mitologia grega, a deusa da fome era Limos. Ela foi gerada por Éris, deusa da discórdia, e rivalizava com Deméter, deusa da fertilidade e da agricultura. Limos foi chamada para castigar o arrogante rei da Tessália, Erisictão, que havia derrubado árvores de um bosque consagrado a Deméter para construir no lugar um salão de banquetes.

Limos lhe incutiu uma fome insaciável. O rei comeu tudo que havia no reino, depois, o que pôde comprar em outras paragens. Vendeu a filha como escrava para ter mais dinheiro e comprar mais comida. Quando já não tinha o que pudesse ingerir, enlouquecido, devorou a si mesmo.

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