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Alan Ghani, Alexandre Borges, Flávio Gordon e Rodrigo Constantino: O fantasma de Stanley Lord tem um recado para você

Como dar um poder quase ilimitado a juízes do discurso alheio nas redes sociais?

Usuário acessa Facebook pelo celular, com tela da rede social ao fundo
Usuário acessa Facebook pelo celular, com tela da rede social ao fundo - Karen Bleiber - 10.mai.12/AFP

Em artigo cometido nesta Folha no último dia 22 (“Direita se une pelo direito de difundir notícias falsas”), o antigo apologista do movimento blackbloc Pablo Ortellado viu na defesa da liberdade de expressão nas redes sociais uma conspiração de “direita”, um ato falho autoevidente que dispensa comentários.

Mesmo reconhecendo a fragilidade das acusações, os signatários deste artigo acreditam que é preciso dar ao leitor desta Folha a oportunidade de conhecer todos os diversos ângulos desse debate, ouvindo diretamente os envolvidos e não apenas as caricaturas, dissimulações, falácias e distorções criadas por um dos lados para evitar o contraditório. Confiamos na inteligência e capacidade dos leitores da Folha de discernir quem está com a justiça, a moral, a liberdade e a verdade neste caso.

Caledon Hockley, rico herdeiro da Filadélfia, não aceitava a paixão da noiva por um desenhista pobre, passageiro da terceira classe do mesmo navio. Sua ideia para acabar a relação: fazer com que seu segurança pessoal, Spicer, colocasse uma joia no bolso de Jack para que Rose pensasse que Jack fosse um ladrão. Quase funcionou.

Hockley criou um tribunal privado para julgar e condenar Jack, usando Spicer e a boa-fé de Rose para o embuste, como você se lembra da cena clássica de "Titanic", de James Cameron. Spicer, com uma Colt M1911 na mão, serviu de fact-checker para o patrão. Agiu como uma terceira parte, interessada e comprometida, e o resultado por pouco não foi uma condenação injusta.

O Judiciário tradicional não está livre de erros, mas ao menos há mais possibilidades de recursos e mais transparência do que no simulacro ficcional protagonizado por Hockley apenas para enganar a noiva.

A luta de intelectuais independentes e novas lideranças da sociedade civil do país contra a patrulha ideológica nas redes sociais, especialmente no Facebook, tem como objetivo evitar o justiçamento destes produtores de conteúdo com base no escrutínio de agentes privados que poderão, ao sabor de motivações difusas ou inconfessáveis, “diminuir o alcance”, para usar o eufemismo da moda, das postagens de cidadãos que tentam exercer sua liberdade de expressão na praça pública do século 21. A liberdade, como avisou Ronald Reagan, está sempre a uma geração da extinção.

Para os novos inquisidores virtuais, sai a opinião livre viabilizada pela revolução digital, uma mudança social e política apenas comparável à invenção da imprensa por Gutenberg há mais de cinco séculos; entra a opinião autorizada, consentida e pasteurizada de um punhado de árbitros sem rosto. Cedo ou tarde, autoritários de todos os matizes sempre se unem contra a liberdade.

Os defensores das tais agências de checagem argumentam falsamente que quem se opõe à prática está ao lado das “notícias falsas”, quando a luta é evidentemente pela liberdade com responsabilidade, exatamente como previsto na Constituição e legitimado pelo senso comum.

 

Como dar um poder quase ilimitado para juízes do discurso alheio que usam mentiras para difamar quem é contra? A prova de independência e honestidade intelectual falha já no primeiro teste, o que deveria, em tempos menos insanos, encerrar a discussão.

Outra prática reveladora do caráter autoritário da iniciativa é ameaçar os que ousaram questionar a independência político-ideológica dos censores virtuais a partir de postagens públicas deles próprios em seus perfis, curiosamente classificando a mera menção dessas posições como "ataques".

Assim como o historiador Paul Johnson fez ao publicar “Intelectuais”, a discussão sobre as opiniões públicas dos inquisidores é necessária para investigar suas eventuais motivações.

Não custa repetir: abusos da liberdade de expressão, o que inclui crimes contra a honra, já estão previstos em lei. Quem comete crimes, dentro ou fora do mundo virtual, deve ser responsabilizado. Fora disso, a classificação arbitrária de quais discursos são incômodos ou não ao statu quo não passa de censura.

Ao longo da história, vários autores e ideias foram considerados ofensivos ou subversivos, mas sem eles a sociedade fica submissa ao discurso único e autorizado. Eleitores pouco informados não são uma exclusividade dos tempos atuais, e a única saída para uma sociedade com cidadãos mais preparados e treinados para resistir a mentiras e manipulações é mais liberdade, e não menos. Contra o iceberg da censura, é preciso treinar constantemente a tripulação do navio e não calar quem está no convés alertando sobre o que está se aproximando da proa.

Assim como crianças não conseguem desenvolver suficientemente seus sistemas imunológicos ao serem apartadas do mundo, uma sociedade blindada do debate livre de ideias, enclausurada numa bolha de repetidores de bordões pré-aprovados pelo poder, está fadada ao declínio e ao desaparecimento. Mais liberdade e educação para todos é o melhor instrumento para o combate às mentiras, como a experiência dos regimes autoritários ensina.

Tanto na ficção quanto na história, o Titanic teve um final trágico, apesar de ser considerado por seus construtores impossível de naufragar. A luta pela liberdade de expressão, característica fundamental das democracias liberais, existe por um final alternativo ao naufrágio da democracia. Hoje há quem se beneficie e comemore a colocação de companheiros para controlar o fluxo de informações da sociedade, mas a maré sempre pode mudar.

Stanley Lord, capitão do cargueiro britânico SS Californian, caiu em desgraça e teve sua carreira e reputação destruídas por não ter ido ao socorro dos passageiros do Titanic. Seu navio passava próximo ao acidente, mas Lord, acordado pela tripulação, não deu importância aos sinalizadores lançados do transatlântico que afundava, e o resultado você sabe. O fantasma do capitão do SS Californian vai sempre assombrar os distraídos e negligentes.

Nosso convite ao leitor não é para a troca de um fact-checking de esquerda por outro de direita, mas pela união de todos pela liberdade e pluralidade dos discursos, com a responsabilização de eventuais abusos como está na lei e usando o arcabouço jurídico da democracia. Enquanto isso, melhor ler este texto antes que seja proibido.

Alan Ghani

Economista e doutor em finanças pela FEA-USP

Alexandre Borges

Analista político e diretor do Instituto Liberal

Flávio Gordon

Doutor em antropologia e escritor, autor de “A Corrupção da Inteligência”

Rodrigo Constantino

Escritor e presidente do conselho do Instituto Liberal

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