Descrição de chapéu
Miguel de Almeida

A vida ou o Estado

Interesses de grupos e corporações se sobrepuseram

O escritor Miguel de Almeida, em evento em São Paulo
O escritor Miguel de Almeida, em evento em São Paulo - Zanone Fraissat - 9.abr.13/Folhapress

Eu tenho medo do Estado.

Constituído nos últimos séculos (digamos, a partir de Hobbes, século 17), ajudou a construir a ideia de nação, solidificou os idiomas, além de oferecer identidades. Trouxe o desenvolvimento, as veleidades e, por fim, as mitologias.

Na outra mão, aprofundou as desavenças, forjou rivalidades e ainda vendeu a morte (sua ou do inimigo), em sua defesa, como algo dadivoso. Hehehe.

Pensando bem, por qual motivo você daria sua vida hoje? Pegaria em armas para soltar Lula? Perderia sua vida para defender o Brasil de uma invasão dos Estados Unidos? (Alguns asnos perdem amigos nas redes sociais, para defender seus pontos de vista, mas não passam disso, como definiu Umberto Eco: tolos).

A queda do Muro (menos no Brasil...) enterrou a morte romântica em nome da ideologia.

Só que o Estado, aos poucos, foi tomado por interesses privados de grupos, de corporações e de causas sociais em nome da caridade.

Os lobbies mais organizados conseguem mais mamatas: funcionários públicos, caminhoneiros, partidos políticos, igrejas, empresas automobilísticas... cada qual ganha seu bocado.

O discurso de embrulho começa na esperta direita e envolve a esquerda corporativa. Por que sempre há a denúncia de cartel na construção dos metrôs? As poucas empresas de reconhecida capacidade técnica venderam o peixe de que não se pode permitir a entrada de concorrentes estrangeiros. O Clube dos Dez faz a festa... embora várias delas façam obras de infraestrutura no exterior.

Ao rejeitar a vinda de construtoras estrangeiras, em nome de um tosco nacionalismo e reserva de mercado, quem paga a conta são os contribuintes de sempre.

O Estado gigantesco não é um fenômeno brasileiro. É mundial. Dos Estados Unidos à França, da Espanha à Argentina, o Estado tem sido consumido pelas demandas daninhas.

Em "A Quarta Revolução -- A Corrida Global para Reinventar o Estado", John Micklethwait e Adrian Wooldridge registram o ataque a governos ocidentais e de como grupos (quem não chora não mama) desviam recursos de toda a sociedade para suas demandas. Olha o diesel aí, gente.

Da ideia original de Hobbes —o Estado deveria oferecer segurança aos negócios e algum bem-estar aos incapacitados— evoluímos no Brasil até as isenções fiscais às automobilísticas e às fábricas de refrigerantes —multinacionais na pindaíba, como Coca-Cola e Ambev.

Mesmo Lord Keynes, usado como biombo para os crimes de sempre, defendia que o Estado não deveria consumir mais do que um quarto do Produto Interno Bruto.

A segurança aos cidadãos imaginada por Hobbes derivou em tempos contemporâneos, a partir da ação de religiosos e de outros fundamentalistas, no rapto de nosso corpo. Homossexualidade dava cana na terra da rainha até meados da década de 1960... Os pobres sodomitas, como diria Proust.

Da proibição do aborto ao combate às drogas, o homem contemporâneo teve o livre arbítrio expropriado.
É proibido por legislações obscuras inclusive de como escolher sua própria morte diante de doença incurável. As indústrias da saúde e da segurança agradecem religiosamente a atenção.

Ah, mas cigarro e bebidas alcoólicas, responsáveis por um número fenomenal de mortes e doenças terminais, recebem módicos incentivos fiscais.

Neste momento eleitoral, é o caso de perguntar: qual Estado querem os brasileiros? Vamos modernizar o governo como o fizeram Suécia e Singapura? Ou seremos uma imensa Grécia ou o Rio de Janeiro do Cabral/Pezão? Como se diz, ficamos velhos antes de ficarmos ricos.

Micklethwait e Wooldridge colocam na mesa a reforma de Estado ora em andamento na China, com o vigoroso capitalismo de Estado criando empresas transnacionais. Secundados por funcionários públicos calcados na meritocracia.

A esquerda brasileira odeia meritocracia. Então, está tudo explicado: para um Marcelo Odebrecht fazer sucesso é necessário um José Dirceu. Um Lula não brotaria sem um Geisel.

Miguel de Almeida

Escritor e diretor dos documentários "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos" e "Tunga, o Esquecimento das Paixões"

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