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Paulo Blikstein

Pedagogia do oprimido ou pedagogia do WhatsApp?

Fixação de Bolsonaro no 'expurgo' de Paulo Freire desvia foco

O educador Paulo Freire (1921-1997), em evento em 1996 - Fabiano Accorsi - 3.out.96/Folhapress

Ganhe quem ganhar, a partir de 1º de janeiro não bastarão mais memes e youtubers para formular nossas políticas educacionais. Precisaremos de soluções.

Debrucei-me sobre os programas de governo em educação. O programa de Haddad ignora a complexidade da implementação da nova base curricular e a necessidade de uma reformulação filosófica profunda na formação de professores. E tenho dúvidas sobre a sustentabilidade da ampliação das universidades federais. Mas é um programa tecnicamente bem escrito, com propostas específicas.

Olhei o programa de Bolsonaro com a mente aberta. É positivo que ele fale sobre a “qualificação crescente” do professor brasileiro. Mas o resto, quando não é bordão, anuncia um futuro perigoso.

As propostas mais famosas são exatamente as de resultado zero. A fixação no “expurgo” de Paulo Freire (1921-1997) é ótima para o WhatsApp, mas nada tem a ver com nossa má performance educacional. Que fácil seria se expurgar Freire nos levasse para uma educação de primeira linha. O programa de educação de Bolsonaro confunde correlação com causalidade e usa casos extremos como se fossem típicos —falta um estatístico na equipe!

A “doutrinação freireana” é uma fantasia fabricada para propaganda eleitoral e promoção pessoal. Eu assisti a horas de discursos de deputados do Escola sem Partido e entrevistas com “especialistas” que dizem ter desmascarado Paulo Freire (um deles diz em seu blog que o regime alimentar dos escravos não era tão ruim assim).

A fórmula é conhecida: há 30 anos, o brasileiro S. E. Castan criou sua editora para negar o Holocausto. Ficou famoso. Funciona assim: para sair do anonimato, pegue um tema muito conhecido e seja o herói destruidor de mitos. A fama custou a Castan uma condenação pelo STF por antissemitismo, mas ele ainda é um mito entre os racistas.

Esses justiceiros modernos ganham notoriedade não pelo que produzem ou propõe, mas por destruir Paulo Freire. O curioso é que ele é doutor honoris causa em mais de 20 universidades no mundo, foi professor visitante na conservadora Harvard e tem cátedras em universidades nos EUA, Canadá e Europa, como a UCLA e McGill. Foi traduzido em dezenas de idiomas e ainda hoje recebe homenagens internacionais póstumas.

Freire é usado no mundo todo pelas melhores escolas do planeta. Sua teoria principal diz que a educação deve ser aproximada da vida do aluno. O estudante deve ser um aprendiz ativo, um resolvedor de problemas consciente de sua realidade e não só um receptor de informações. Quem, em pleno século 21, quer um profissional ou cidadão que aceita tudo, sem criatividade ou iniciativa?

Engraçado: por décadas, em dezenas de países, ninguém percebeu que Paulo Freire é uma farsa. Só dois youtubers brasileiros, um dos quais criou sua própria editora para publicar seu livro. E agora essa grande “revelação” vai virar política pública no Brasil?

Em vez de focar no expurgo, a equipe de Bolsonaro deveria ter pensado se a educação a distância é boa no ensino fundamental ou quantas escolas militares (cujo aluno custa três vezes mais) cabem no orçamento do MEC. Claro: é mais popular achar um inimigo comum e culpá-lo por todos os problemas.

Mas a guerra contra Freire é só o começo. Outras virão, construídas com exemplos extremos como se fossem típicos e confundindo correlação com causalidade. O aquecimento global será uma “conspiração de cientistas para parar o nosso grande Brasil”. A evolução das espécies será “só uma teoria ainda não verificada”. A diversidade e o respeito às diferenças virarão “privilégios”. Sempre haverá um especialista youtuber disposto a fornecer provas para qualquer teoria, mesmo que vá contra centenas de cientistas das melhores universidades do mundo.

Uma pena que o time de Bolsonaro não priorize o que realmente terá impacto, como formação de professores, currículo de qualidade, período integral, menos alunos por sala e tecnologia nas escolas.

Insistir em distrações, exageros, expurgos e sensacionalismo rende votos e curtidas, mas é criminoso com nossas crianças. Ainda prefiro a pedagogia do oprimido à pedagogia do WhatsApp.

Paulo Blikstein

Professor da Universidade Columbia, em Nova York (EUA)

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