'Piada' racista grátis

Rodas de samba, ônibus, avião. Tudo lotado de gente sendo repetidamente racista

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Semayat Oliveira

Jornalista, cofundadora do site Nós, mulheres da periferia e escritora

Acorda no escuro e sai cambaleando para acender a luz da cozinha. Torneira, água na leiteira, fogo. A barriga fica encostada na pia até o ponto de passar o café chegar. Crianças dormindo, mãe e pai na beira de acordar. Com mochila às costas, Daiane —vou chamá-la assim— dá um gole e sai.

Falta tempo para ler notícias ou tweets. No almoço, não posta foto de prato de comida nem cai na cilada de rebater colegas de trabalho crentes de que vivemos tempos de censura. O humor vai acabar, dizem. Embora não pense assim, fica calada. Se discordar, o clima no escritório pode pesar pro lado dela. Sua opinião, afinal, não vai mudar nada. Seus 40 anos de Brasil ensinaram assim, pelo menos.

uma mãe abraça seu filho, que tem na roupa ícones negros como Itamar Assumpção, Silvio Almeida, Mariele Franco, Milton Santos, entre outros
Ilustração de Luisa Amoroso - Luisa Amoroso

Aos 15, parou de amarrar o cabelo numa liguinha encharcada de creme. Era laço tão forte que fazia sua cabeça doer. Difícil até de prestar atenção na aula. Se livrou disso! Fios soltos, macios. Nada doía. Ao sair na rua, não esperava elogios e fazia o possível para ignorar olhares ofensores.

Ao visitar uma amiga branca na rua de baixo, tão pobre quanto ela, ouviu numa lapada: "Mudou o cabelo! Agora, se quiser cortar, é só com cortador de grama. Rá, rá, rá rárá". Não precisou pagar ingresso, sentar em plateia, pegar fila… nada. Recebeu a "piada" racista grátis, voltou com raiva no corpo e sem amiga branca. Sumiu dali, mas o Brasil está cheio.

Rodas de samba, ônibus, avião, universidades, escolas —do pré ao ensino médio. Tudo lotado de gente sendo repetidamente racista. Depois se mostram frágeis, vítimas e censurados perante a lei: "Estou aprendendo", "Não foi por mal", "Mas é liberdade de expressão! This is art!".

A internet deve ter mais pedido de desculpas seguido de chororô lacrador do que condenados por racismo. Pessoas que não aguentam um dia de Daiane. Muitas, aliás, se a ouvissem conversando com os pais durante o jantar —"Vocês não sabem o que a galera branca do serviço me disse hoje!"— se sentiriam ofendidas. A ilusão do racismo reverso, né? Haha…

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