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Jerson Kelman e José Renato Nalini

Confiabilidade das delações premiadas

Deve-se observar as limitações cognitivas do delator

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Jerson Kelman José Renato Nalini

Num capítulo da série “Explicando - A Mente”, disponível na Netflix, ocorre o depoimento de uma mulher que foi vítima de estupro. Sentado a seu lado, o homem que não havia cometido o crime, como ficou comprovado por teste de DNA realizado 20 anos depois, mas que foi condenado e passou 11 anos numa penitenciária. Muito sem jeito, ela explica como a polícia a induziu na ocasião a “reconhecer” o inocente entre sete homens postados à sua frente.

Na sequência, vem a informação que, depois do advento do teste de DNA, centenas de condenações semelhantes foram revistas nos Estados Unidos, sendo que 70% delas haviam sido proferidas com base em testemunhos errados. Mas por que mentiram?

O surpreendente é que, em geral, não mentiram, apenas lembraram-se de forma imprecisa ou totalmente errada o que de fato havia ocorrido. Não por falha de caráter e sim porque o cérebro não funciona como um arquivo em que cada registro permanece trancado e inviolável. Ao contrário, no cérebro, cada recordação vai se modificando ao longo do tempo à medida que se acumulam novas informações, expectativas e conceitos éticos.

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O empresário Joesley Batista deixa a sede da Policia Federal, em São Paulo, após ser preso por violação do acordo de delação premiada - Leonardo Benassatto - 07.ago.18/Reuters

No Brasil, só recentemente se admitiu o uso de delações premiadas, com o cuidado de que ninguém pode ser condenado com base apenas nelas. Ou seja, é preciso acrescentar provas. Isso na teoria. Na prática, o que se vê é a supervalorização das delações, tanto pelo Ministério Público quanto pela mídia. A consequência é que, mesmo quando o acusado é absolvido, sua reputação é inescapavelmente condenada.

Tal vertente evidencia o quão acertada é a providência de se coibir excesso de protagonismo, que, até com as melhores intenções, causa manifesta injustiça. O conúbio entre alguns integrantes do Ministério Público e certas mídias faz com que a notícia de abertura de inquéritos civis e propositura de ações civis públicas cheguem ao noticiário antes de seu ingresso no Judiciário. 

Se ao Ministério Público se conferiu um status qualificado, que o converteu na instituição mais poderosa da República, é justificável que se reclame dele uma conduta ética irrepreensível. Não pode existir, numa democracia, uma instituição acima de qualquer espécie de controle.

Perante a sociedade, todo membro do Ministério Público reveste uma aura de legitimidade simbólica, no compreensível mimetismo de considerar toda apuração uma espécie de “nova Lava Jato”. Por isso é que, ao se avistar com o promotor, qualquer envolvido e toda testemunha já se apresenta numa evidente inferioridade. Além de temor reverencial, existe uma nítida intenção de colaborar, até às vezes com o propósito de “mudar de lado” e passar para a “banda saudável” da nacionalidade.

Os advogados dos acusados no âmbito da Operação Lava Jato têm levantado a hipótese de que os delatores mentem para reduzir as respectivas penas. É possível. 

Porém, é também possível que falem a “sua verdade”, baseada numa memória que se adapta inconscientemente à versão que mais agrade ao Ministério Público. Sendo assim, é preciso não supervalorizar o conteúdo das delações. Por outro lado, muitas delações premiadas efetivamente revelam crimes e os seus respectivos autores.

O ineditismo da adoção dessa estratégia causa estranhamento em autorizadas vozes do direito penal pátrio. Repugna a alguns a utilização de uma tática inusual no sistema.

Outros enxergam com benevolência a introdução desse hibridismo: importar institutos da tradição anglo-saxã que possam servir para modernizar o vetusto sistema criminal brasileiro. Afinal, tem-se um Código Penal ainda estruturado na década de 1940 e um processo penal apenas um ano mais jovem.

A conclusão, ora submetida a debate, é que as delações premiadas devem ser mantidas em nosso sistema judicial, porém com pleno entendimento das limitações cognitivas a que estão submetidos os delatores.

Jerson Kelman

Morador do Rio de Janeiro, é ex-presidente da Sabesp e professor da COPPE-UFRJ

José Renato Nalini

Reitor da Uniregistral, professor de pós-graduação na Uninove e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (2014-15)

TENDÊNCIAS / DEBATES

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