É comum que episódios de grande repercussão se cerquem de interpretações e versões diversas. Normal não é. Mas acontece de a versão ganhar mais vulto que o fato. Não só quando a mentira é mais colorida que a verdade, mas quando a habilidade do acusado é tal que ele se passa por paladino da justiça aos olhos da multidão.
O caso das delações da J&F tem sido assim. Deturpações a granel. As versões que se produziram em torno da colaboração com a Justiça se sobrepuseram aos fatos, aos documentos e às provas. O ilustre criminalista Alberto Zacharias Toron, advogado do deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), publicou nesta Folha algumas afirmações que, se pertencem ao universo das versões, não têm pé nos fatos.
Uma delas foi dar ao ex-procurador da República Marcelo Miller papel que ele não teve no caso. Miller jamais foi contratado pela J&F. Muito menos para tratar de delação premiada. Ele foi contratado por um dos maiores escritórios do mundo, o Baker McKenzie —que, no Brasil, atua com o Trench, Rossi e Watanabe (TRW)—, referência mundial em “compliance” e investigação interna. O papel desse escritório seria o de negociar o acordo de leniência da empresa. O TRW já atendia o grupo, mas em outras questões, e nunca se envolveu com o acordo de colaboração judicial.
A fabricação desse equívoco tem um objetivo óbvio: anular provas dos fatos e livrar devedores das penas que lhes serão impingidas. É o velho truque da cortina de fumaça, usado sempre para turvar a percepção da plateia e esconder os verdadeiros interesses de quem o aplica.
Para desnudar o número farsesco, é preciso antes explicar como um acordo posterior (leniência) poderia influir em contrato anterior (delação). O dano causado pela forma com que a delação foi tratada não afetou apenas os colaboradores. Feriu também o mais poderoso instrumento de combate ao crime do Brasil contemporâneo.
É bom começar do começo. A J&F aceitou uma oferta do Estado brasileiro. Contar tudo o que fez e o que fizeram outras pessoas. O custo disso só quem viveu pode narrar. O relato apresentado colocou os pingos nos “is” e contribuiu com o interesse público, mas feriu interesses, interrompeu negócios, demoliu reputações, destronou lideranças. Não o relato, mas os fatos em si.
Quem não ficou bem na foto reagiu. Natural que quem se viu desmascarado tente desmoralizar o algoz. O que não é natural é aplaudir vingança e retaliação de quem praticou atos que prejudicaram o país. Essa é a situação dos “delatores”: ter que se defender por ter aceitado a proposta do Estado brasileiro de confessar seus erros e os erros alheios.
O brasileiro fica na contingência de decidir de que lado vai ficar. Dos que rompem com o lado ruim do passado e mudam, ou dos que querem fugir de suas responsabilidades.
No mais, fica a ironia de constatar que os principais interessados nos resultados das delações estão conseguindo o que todos seus inimigos não conseguiram: desmoralizar essa inovação no quadro jurídico brasileiro.
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