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Erika Hilton

Atletas só querem jogar

Sexo biológico não pode ser único critério no esporte

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Nos próximos dias deverá retornar à pauta de votação da Assembleia Legislativa de São Paulo o projeto de lei 346/19. E, novamente, gastaremos tempo e recursos para discutir um projeto que só traz impactos negativos a quem ele se destina.

O projeto de lei propõe que o “sexo biológico” seja “o único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado”. Sem embasamento científico, a consequência mais direta do projeto é: produzir mais exclusão para as pessoas transvestigêneres. Uma pausa para a explicação. O termo, criado por mim e Indianare Siqueira, contempla homens e mulheres transexuais, travestis e não binários —ou seja, todas as pessoas não cisgêneras. E pessoa cisgênera (ou apenas “cis”) é aquela que se identifica com o gênero atribuído no seu nascimento.

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A codeputada estadual Erika Hilton (SP), que compõe mandato coletivo da Bancada Ativista do PSOL - Karime Xavier - 12.mar.19/Folhapress

Mas quantas transvestigêneres você conhece? Quantas pessoas trans foram suas colegas de trabalho ou de escola? Quantas frequentam os mesmos restaurantes, bares e lojas que você? E quantos atletas trans você conhece? Não me surpreenderia se sua resposta for nenhuma para todas as questões. E por quê? Porque a não aceitação dos nossos corpos produz exclusão, marginalização e invisibilidade. Mesmo que você não conviva com pessoas transvestigêneres, elas existem e têm os mesmos direitos que qualquer cidadão. 

No entanto, a ignorância e o preconceito fazem com que desde muito cedo conheçamos o pior da humanidade: somos ridicularizadas na escola até desistir dos estudos (e não é evasão escolar, mas expulsão escolar), o que leva à dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, restando apenas a prostituição compulsória e violenta como forma de sobrevivência para 90% das mulheres transexuais e travestis. E sobrevivemos muito pouco: nossa expectativa média de vida é de 35 anos, sendo o Brasil o país que mais mata travestis e transexuais. E por que, mesmo sabendo disso, usam uma Casa Legislativa para produzir mais exclusão?

Alguns dirão que não se trata disso, mas de corrigir uma “vantagem” física que as mulheres transexuais  teriam sobre as mulheres “cis”. Dizem que é “justiça esportiva”. Ignoram, no entanto, que o Comitê Olímpico Internacional já se pronunciou sobre o tema: sim, mulheres trans podem competir em equipes femininas, desde que se declararem do gênero feminino e que apresentem nível de testosterona inferior a 10 nanomol por litro de sangue, após 12 meses de tratamento hormonal, não havendo necessidade da cirurgia de redesignação sexual. 

O nível de testosterona da jogadora de vôlei Tifanny Abreu (possivelmente a única atleta trans de que alguns se lembram) é de 0,2 nmol/L, inferior aos índices de mulheres “cis”, que costumam variar entre 0,21 e 2,98 nmol/L. Portanto, não há vantagem competitiva.
 

E tem mais: se apenas o “sexo biológico” for usado para determinar o gênero em competições esportivas, significa que os homens trans passariam a competir com mulheres cisgêneras. Explico: homens trans são pessoas que foram identificadas como meninas no nascimento, mas que se reconhecem como homens.

Durante a transição, fazem terapia hormonal com testosterona, desenvolvem barba e mais pelos no corpo, têm aumento da força física e podem se submeter à cirurgia de mastectomia (remoção dos seios). Eles passariam a competir em equipes femininas. Assim, se a justificativa de corrigir uma vantagem competitiva for verdadeira, neste caso o projeto de lei provocaria o contrário: uma injustiça esportiva. 

Por fim: será que atletas trans são o principal problema do esporte em São Paulo? Parece-me que o autor do projeto não conversou com a comunidade esportiva sobre as condições dos locais para treino, alojamentos, equipamentos, baixa remuneração dos profissionais ou falta de patrocínio para os paratletas.

Talvez meia hora de conversa gerasse proposituras mais coerentes com as reais necessidades do esporte, e nos pouparia do desperdício de tempo de debate público para discutir um projeto que não beneficia ninguém.

Erika Hilton

Vereadora (PSOL-SP) e presidenta da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo

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