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Fernando Luiz Abrucio e Marco Antonio Carvalho Teixeira

Formação para uma boa administração pública faz diferença

No plano federal, infelizmente, predominam amadorismo, ausência de diálogo e autoritarismo

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Fernando Luiz Abrucio e Marco Antonio Carvalho Teixeira

Os países bem-sucedidos no combate à Covid-19 têm uma característica em comum: a administração pública tomou decisões corretas e soube implementar adequadamente as medidas. Há diferenças entre essas nações em termos de tamanho do Estado, espectro político do governante e modelo cultural. De toda maneira, embora não haja uma receita de bolo do que fazer contra a pandemia, havendo mais de um cardápio de instrumentos, em todos os casos se destacaram cinco características de uma boa gestão pública.

A primeira delas é a capacidade de dialogar e liderar as ações governamentais junto à sociedade e aos funcionários públicos da ponta —o "street level bureaucracy". É claro que cabe aos eleitos a liderança maior, mas seus principais assessores, ocupantes de altos postos administrativos e gestores de serviços públicos, precisam também desenvolver capacidades gestoras de direção e de relacionamento com os atores envolvidos na construção da agenda, na formulação e na implementação.

O presidente Jair Bolsonaro ajusta a sua máscara em frente ao Palácio do Alvorada, em Brasília - Adriano Machado - 26.mai.20/Reuters

O sucesso da administração pública no combate à Covid-19 também tem a ver com a qualidade da gestão de pessoas do setor público. A lista de ações é bem conhecida pela literatura especializada: processos seletivos bem realizados, profissionais bem formados e motivados, modelos efetivos de avaliação e responsabilização da burocracia e, com especial importância, formas transparentes e meritocráticas de escolha dos ocupantes de cargos estratégicos do Estado.

Um terceiro aspecto tem contribuído fortemente para o êxito dos países: o uso de instrumentos de avaliação e monitoramento das políticas públicas. Quem mais acertou até agora na luta contra a pandemia foram os governos que mais testaram seus habitantes, que elaboraram mapas para acompanhar diariamente o comportamento da doença nos planos territorial e sociodemográfico, que elaboraram indicadores para mensurar os efeitos das ações governamentais; enfim, fizeram da informação um elemento estratégico para a tomada de decisões.

Aqui, além de conhecimentos vinculados à estatística e instrumentos de inteligência artificial, fez-se necessário ter profissionais que sabem interpretar os dados e o comportamento humano diante de intervenções públicas, envolvendo a capacitação em psicologia, sociologia, economia comportamental e ciência política. Sem uma burocracia com gente habilitada nessas competências, é muito difícil acertar no combate à Covid-19.

Cabe reforçar este ponto: não basta ter um pessoal que passou por concursos públicos e carreiras estruturadas se esse tipo de profissional não tiver a formação adequada para atuar numa gestão pública orientada por resultados, definidos na sua especificidade técnica e pela lógica democrática de responsabilização da administração pública.

A burocracia deve ser capacitada e se organizar para atuar em prol da coordenação de todos os esforços governamentais contra a pandemia. Essa é uma quarta característica dos casos bem-sucedidos, o que envolve o desenvolvimento de uma visão estratégica e intersetorial dos problemas públicos. Isso significa que a questão sanitária deve estar conectada às ações educacionais, ao campo econômico, às medidas de assistência social e à reorganização do funcionamento das grandes cidades, para citar as principais questões. Algumas experiências criaram, inclusive, comitês de gerenciamento da crise, formados por profissionais interdisciplinares que tomaram decisões conjuntas que analisavam transversalmente os efeitos das medidas de combate à Covid-19.

Por fim, o sucesso na luta contra o novo coronavírus depende de uma preocupação da sociedade com a formação universitária dos futuros gestores públicos. Afinal, se não há capital humano com as competências necessárias para trabalhar com os problemas complexos relacionados às principais políticas públicos e dilemas coletivos, fica quase impossível ter um Estado que contribua para o bem-estar dos seus cidadãos e, sobretudo, que seja capaz de liderar a nação contra grandes crises, como a que o mundo está vivendo agora.

Há vários modelos institucionais para lidar com esse processo formativo de gestores e lideranças públicas, mas, de todo modo, quem tem tido bons resultados são os países com universidades e cursos preocupados especificamente com o desenvolvimento de administradores públicos humanistas, democráticos, eficientes e efetivos.

A administração pública brasileira passou por várias transformações desde a Constituição de 1988. Várias inovações e melhorias foram realizadas, como demonstram os exemplos das ações vinculadas ao Plano Diretor do Aparelho de Estado, confeccionado por Bresser-Pereira em parceria com excelentes gestores públicos, e políticas públicas bem-sucedidas, como o Bolsa Família, o Programa de Saúde da Família, a Lei de Acesso à Informação etc.

Os avanços obtidos, no entanto, não resolveram todos os problemas de gestão pública do país. É preciso fazer novas reformas e transformar velhos padrões que ainda não foram extirpados, como a seleção fisiológica para cargos públicos —reforçada agora pelo casamento entre Jair Bolsonaro e o centrão–, a descontinuidade administrativa, a falta de transparência, a dificuldade de definir resultados e os indicadores que devem mensurá-lo, entre outros.

O Ministério da Saúde (MS) tem apresentado vários problemas de gestão desde o início da pandemia. Embora o SUS seja uma invenção bastante engenhosa do Estado brasileiro, sua maior qualidade, que é o incentivo à cooperação federativa, foi jogada no lixo pelo governo Bolsonaro.

O aspecto político foi descolado da base técnica, a descoordenação das ações dos vários ministérios federais é patente —e nem precisa ver a reunião do dia 22 de abril para saber disso–, a indefinição de mecanismos de monitoramento e avaliação que se orientem por objetivos claros é assustadora, a falta de conhecimento especializado e competências necessárias para a ocupação dos principais postos do MS é agora óbvia; em suma, a administração pública federal não está estruturada no modelo bolsonarista para resolver o problema da Covid-19.

A formação com foco direcionado para a complexidade do setor público e nas diferentes organizações governamentais e não governamentais que atuam no desenvolvimento de políticas públicas faz muita diferença. Por isso, desde 2014, após um longo processo de debate público, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de graduação em administração pública, políticas públicas, gestão pública, gestão social e gestão de políticas públicas. O objetivo foi fortalecer a formação de profissionais para atuarem nos diversos espaços da vida pública: como políticos, gestores públicos na administração pública estatal e não estatal, nacional e internacional, bem como pesquisadores e avaliadores de políticas públicas, além de empreendedores sociais e responsáveis pela "advocacy" de múltiplas organizações da sociedade.

Passados seis anos, é possível afirmar que a criação das DCNs específicas para os cursos da área pública é um caminho sem volta que representou um enorme avanço para a qualidade dos serviços públicos. Muitos egressos já atuam em carreiras de especialistas em políticas públicas e gestão governamental. Outros estão em ONGs e organismos internacionais, assim como em áreas de responsabilidade social empresarial e em consultorias de políticas públicas e análise de risco político e econômico, além de também buscarem a carreira política.

Há ainda um grupo que atua na organização de novos negócios sociais ou atua na mobilização e gerenciamento de diversos grupos sociais, alguns deles emergentes e que nunca tiveram voz em nossa história. Por fim, está sendo formada uma geração de pesquisadores que, com base em evidências e espírito democrático, poderá trazer novas respostas aos problemas brasileiros. Em resumo, houve um investimento enorme para formar profissionais qualificados que certamente já estão contribuindo para a melhoria das decisões públicas do país e poderão fazer muito mais no futuro.

É esse tipo de profissional que deveria ser chamado para lidar com a crise da Covid-19 no Brasil. Mas no plano federal, infelizmente, predominam o amadorismo, a ausência de diálogo e o autoritarismo junto aos governos subnacionais e à comunidade científica, o sectarismo ideológico, a falta de humanismo e empatia com os afetados pela pandemia, além da ausência de uma política planejada estrategicamente por técnicas de monitoramento e avaliação.

O resultado só podia ser o que estamos vendo: o governo Bolsonaro tem um dos piores —se não o pior— desempenho do mundo no combate à pandemia.

Fernando Luiz Abrucio e Marco Antonio Carvalho Teixeira

Professores do curso de administração pública da FGV-Eaesp

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