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Andre Pagliarini

Nacionalismos em disputa

Visões à esquerda e à direita se assemelham no Brasil e nos EUA

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Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

​Concepções distintas do nacionalismo estão a digladiar hoje na política do Brasil e dos Estados Unidos com algumas semelhanças importantes entre os campos divergentes. Tanto o ex-presidente Lula quanto o candidato à presidência pelo partido Democrata Joe Biden alegam que o presidente de seus respectivos países comprometeu a soberania nacional para beneficiar entes estrangeiros.

Por sua vez, Jair Bolsonaro e Donald Trump se colocam como guardiões da nacionalidade autêntica sitiada por um globalismo recrudescente. Nos Estados Unidos, a visão trumpista sobre questões centrais é claramente minoritária, de acordo com várias pesquisas. No Brasil, o conservadorismo extremo que deu luz ao bolsonarismo parece ter mais embasamento popular.

Em seu discurso comemorando a independência brasileira, Lula acusou o presidente em exercício de cometer “um crime politicamente imprescritível, o maior crime que um governante pode cometer contra seu país e seu povo: abrir mão da soberania nacional.” O petista apontou vários exemplos de como o atual governo “subordina” os interesses brasileiros “de maneira humilhante”, bem como “submete nossos soldados e nossos diplomatas a situações vexatórias”.

Prova parcial dessa alegação é o documento que deve ser lançado em breve por um grupo de diplomatas dissidentes esboçando uma política externa pós-bolsonarista que buscará reverter eventuais danos à imagem brasileira no exterior. “Soberania significa independência, autonomia, liberdade. O contrário disso é dependência, servidão, submissão,” disse o ex-presidente Lula, que pode ou não enfrentar Bolsonaro nas urnas em dois anos.

Não sabemos ainda o efeito que terá o discurso de Sete de Setembro de Lula. Mas ele claramente assinala qual será uma das principais linhas de ataque contra o presidente pelo PT e, imaginemos, outras figuras expressivas da oposição, como Ciro Gomes e Flávio Dino: o Brasil de Bolsonaro está hoje mais dependente, e não menos, dos países mais ricos.

Biden apresentou uma crítica similar em seu discurso na convenção do partido Democrata no final de agosto. Criticando a maneira em que Trump tem lidado com o novo coronavírus, disse que em seu eventual governo “produziremos os suprimentos médicos e equipamentos de proteção que nosso país precisa. E nós os faremos aqui na América [Estados Unidos]. Portanto, nunca mais estaremos à mercê da China e de outros países estrangeiros para proteger nosso próprio povo”. Também, de forma velada, atacou a conivência do atual mandatário com a Rússia de Vladimir Putin, dizendo não tolerar “a interferência estrangeira em nosso exercício democrático mais sagrado —o voto".

Brasília e Washington obviamente operam com prioridades e poderes assimétricos. O entreguismo que Lula enxerga nos movimentos do atual governo não tem paralelo exato na política dos Estados Unidos, sendo essa, afinal, ainda a maior potência global. Mas o cerne dos argumentos é parecido: mesmo adotando um discurso de cunho populista, os presidentes hoje no poder, ambos da extrema direita, se preocupam menos com o interesse popular do que com o alinhamento a forças exógenas antinacionais. Ao abraçar posições e líderes estrangeiros pouco afinados com o caráter nacional, Bolsonaro e Trump estariam traindo valores primordiais de solidariedade, independência, resiliência e tolerância.

Bolsonaro e Trump apresentam o argumento ao avesso, acusando a esquerda de conspirar contra o interesse nacional tanto hoje quanto no passado. “Nos anos 1960, quando a sombra do comunismo nos ameaçou,” disse Bolsonaro em seu discurso comemorando a independência brasileira, “milhões de brasileiros, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, foram às ruas contra um país tomado pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada".

Como argumento histórico, essa colocação não faz sentido —o comunismo jamais chegou a ameaçar o país—, mas como argumento político tem lá sua lógica: quem defendia intervenção militar não era golpista, mas um nacionalista frustrado pelos rumos caóticos do país.

Trump, em plena campanha, atacou o adversário diretamente ao receber a indicação do partido Republicano recentemente: “Joe Biden não é o salvador da alma da América —ele é o destruidor dos empregos da América e, se tiver a oportunidade, será o destruidor da grandeza americana". Trump não se coloca como um gestor eficiente e competente —até porque grande parte do eleitorado não o vê como tal—, mas como protetor da essência estadunidense contra Biden, que ele tenta tachar de avatar da esquerda radical.

No discurso de Bolsonaro e Trump, a esquerda aposta na mudança social de baixo para cima, visando transformar o país e abandonar supostos valores fundamentais do cidadão médio. Para Lula e Biden o problema é mais em cima, com líderes reacionários e autoritários dispostos a sacrificar o interesse popular para agradar uma minoria poderosa.

Falando em rede nacional para marcar o aniversario do Brasil como país independente, Bolsonaro fez questão de reiterar “meu amor à pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade, valores dos quais nosso país jamais abrirá mão.”

Vale notar que o presidente se colocou como o guardião da soberania, enquanto o ex-presidente Lula o caracterizou como vendilhão do mesmo. Os dois não podem ter razão ao mesmo tempo.

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