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Carlos Magno Fortaleza

É preciso continuar, não consigo continuar, eu vou continuar

Entre a fé e o desconsolo, somos movidos pelo inescapável senso de dever

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Carlos Magno Fortaleza

Presidente da Sociedade Paulista de Infectologia e professor da Faculdade de Medicina da Unesp (Botucatu)

É difícil trazer para o português a força dramática de “I can’t go on, I’ll go on”, trecho final do inominável Samuel Beckett (1906-1989). Mas quem está na linha de frente do atendimento à pandemia do coronavírus conhece o sentimento em toda sua extensão. O mesmo sentem aqueles que lutam para convencer a população e as autoridades sobre as medidas para prevenir a Covid-19.

É preciso continuar, porque há pessoas morrendo. Ambulâncias paradas em frente aos hospitais não conseguem internar seus pacientes, dependentes de ventilação mecânica, por falta de leitos. Nos locais onde escasseia o oxigênio, o horror lembra “O Triunfo da Morte”, quadro de Pieter Bruegel exposto no Museu do Prado, em Madri. Em todos nós, dos motoristas de ambulância aos biólogos moleculares que buscam identificar variantes do coronavírus, pesa a responsabilidade com a vida, um valor que não pode ser reduzido a cifras econométricas.

Não conseguimos continuar, estamos exaustos de plantões, temerosos de trazer a doença às pessoas que amamos, devastados por ser incompreendidos por multidões que defendem o direito de morrer e matar, colaborando para a transmissão do coronavírus. As palavras usuais —estresse, depressão e “burnout”— tornam-se diminutivos para nosso estado de espírito. Desconsolados, assustados, cansados, muitas vezes acreditamos ter chegado ao limite.

Nós vamos continuar, porque não há opção. Pregaremos o isolamento social e o uso de máscaras até que a rouquidão roube nossas últimas palavras. Atravessaremos noites transportando pacientes, conduzindo atendimentos de urgência e velando obsessivamente pela função respiratória de cada pessoa afetada pela nova peste.

Samuel Beckett, Prêmio Nobel de Literatura de 1969, irlandês que escrevia em francês, é considerado um dos expoentes do teatro do absurdo. Mas aqui estamos nós —recepcionistas, técnicos de enfermagem, motoristas, médicos, profissionais de limpeza, maqueiros e enfermeiros— confirmando dia a dia que o absurdo saiu dos palcos e invadiu nossas vidas. Próximos a nós, cientistas e autoridades de saúde pública constatam o mesmo.

O teatro do absurdo se configura quando matérias publicitárias em grandes jornais do país pregam um falacioso “manifesto pela vida”, cujo único objetivo é vender falsas esperanças (as pílulas milagrosas) sem comprovação científica e boicotar as medidas que de fato protegem nosso bem mais precioso. Quando autoridades promovem aglomerações em conjunto com empresários do comércio de varejo. Quando ecoam em redes sociais ideias de que devemos aceitar a morte dos pobres, desde que os abastados mantenham seus lucros. Sim, porque pesquisas conduzidas em diversos países (incluindo Inglaterra, Estados Unidos e Brasil) mostram que as vítimas são principalmente pobres e pretos... “E quase brancos quase pretos de tão pobres”, para citar Caetano Veloso.

E assim, exauridos, oscilando entre a fé e o desconsolo, no limite de nossas forças, porém movidos pelo inescapável senso de dever, vamos em frente. Nosso apelo: que outros venham conosco. Na pior hipótese semearemos o gérmen disforme da esperança —tema de outra obra de Beckett, “Esperando Godot”. Na melhor delas, salvaremos centenas de milhares de vidas. Sim, é preciso continuar...

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