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Celso Athayde

Memória colonizada

Devemos enxergar a África além de suas óbvias ausências

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Celso Athayde

Fundador da Cufa (Central Única das Favelas) e presidente da Favela Holding

Ao sair do Brasil, em meados de junho, eu pensava em como seria minha experiência na África. Não esperava encontrar o mesmo continente dos livros de história, dos filmes ou dos jornais. Sabia que seria mais profundo, tocaria minha alma.

Enquanto embarcava no voo de volta, era como se estivesse deixando a minha casa. A África me transformou em um homem dividido, entre o amor incondicional da mãe e a paixão pela própria história.

Celso Athayde na África
Celso Athayde acompanhado de jovens camaroneses - Divulgação

Nas batidas do meu coração, ouço a voz da vovó Maria Conga e a sabedoria de Mãe Menininha do Gantois. Sinto o chão sob meus pés descalços, a alegria e a esperança de ter encontrado meu lugar no mundo. Em cada cidade, em cada aldeia da Guiné, da Etiópia e de Camarões.

Conversei com gente de todas as classes. Políticos, empresários, militares. É difícil conceber o momento em que se percebe que todos são negros. Do recepcionista à empresária, do prefeito à faxineira. Pretos e pretas iguais a mim. É como estar entre irmãos.

Escolhi visitar Camarões pelas histórias que meu bisavô contava dos seus avós vindo de lá. Eu me apaixonei pela Kiki, camaronesa que me apresentou o país. Ao me encontrar toda manhã, ela dizia: “Celsô, le Cameroun c’est le Brésil”. Somos uma só nação. Senti isso.

Corri com crianças iguais às da Favela do Sapo. Naquela terra de chão batido, pulsaram memórias de pretinho lá em Senador Câmara, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Em meio à poeira, clareavam sonhos, sorrisos e uma inocência que corria com habilidades de pés que caminharam tão longe até voltar ao solo sagrado do ponto de partida.

Na terra dos meus antepassados, iniciamos um projeto de formação esportiva, levamos a operadora de telefonia Alô Social e demos o primeiro passo para a construção de uma linha de montagem de jipes, Cab Motors, com tecnologia brasileira.

Numa nação que foi invadida, roubada e destruída por piratas de vários países, em que 90% da economia é informal, o empreendedorismo mantém esses heróis vivos.

Já na Etiópia, aprendi com seu Noounibán, vendedor de tapetes com problema na perna, que não podemos querer que todos sejam empreendedores. A maioria faz escolhas por convicção, não por preguiça, e cada decisão deve ser respeitada.

A mídia nos ensina que só existe uma África, subdesenvolvida, corrompida pela miséria. São 54 países e culturas diversas. Egito, Marrocos, Tunísia e Argélia são exemplos dessa diversidade cultural e religiosa, mais associados ao Oriente Médio e ao islamismo do que ao colorido das religiões africanas.
Há problemas, mas também soluções construídas a partir do empreendedorismo típico de negros acostumados a viver na informalidade.

A liberdade efetiva, inclusive das marcas trágicas do passado, depende de uma língua comum que permita a pretos e pretas do mundo se entenderem e se desentenderem com racionalidade.

O racismo à brasileira remeteu qualquer ligação com a terra mãe à ideia de um mundo de bárbaros, afogado em guerras, pobrezas e doenças. E isso constituiu o DNA da sociedade brasileira: a negação de si própria e a construção do imaginário que gerou um valor simbólico da população preta relegada à servidão e à miséria.

Enxergar a África como local de ausências é parte da memória colonizada que tenta nos fazer renegar nossa mãe. Reconstituir os laços é nadar na contramão do apagamento social, político e físico de um continente.

As favelas africanas são conexões das brasileiras. Pisar no solo sagrado da nave mãe foi reescrever minha própria história. Os estilhaços se juntaram em um mosaico de esperança. Não sei o que vou fazer nesse lugar. Só sei que pertenço a ele. A única patente que aceito é da mãe maior, a mãe África.

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