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O que a Folha pensa

Fantasia desfeita

Biden foi imprudente ao executar retirada do Afeganistão e insensível ante caos

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Afegãos sobem em avião na tentativa de deixar o país e fugir do Taleban - Wakil Kohsar/AFP

Cunhado pelo alemão Ludwig von Rochau no século 19, o termo “realpolitik” designa o exercício da política baseado em avaliações cruas da realidade e de seus impactos.

País que cultiva a mística dos pais fundadores e que supõe representar uma ideia há 245 anos, os EUA nem sempre foram aderentes à prática, preferindo maquiar suas intenções sob o verniz invariavelmente hipócrita da correção.

A vertiginosa tomada do Afeganistão pelo Taleban, grupo extremista islâmico enxotado do poder pelos americanos na esteira do atentado de 2001, abre um novo e didático capítulo nessa história.

A decisão do presidente Joe Biden de deixar o país à própria sorte, de resto já tomada por Donald Trump, tinha tantas justificativas quanto a invasão de 20 anos atrás.

O objetivo primário, desalojar a rede terrorista Al Qaeda, sob guarida do Taleban, fora conquistado. A morte do arquiteto do 11 de Setembro, Osama bin Laden, já conta dez anos. Por que ficar?

Cinco gestões de três presidentes lidaram com o dilema, que custou mais de US$ 2 trilhões e 170 mil vidas, quase todas afegãs. A questão é que havia um ideal a sustentar, o da reconstrução nacional.

Sempre criticados por sua atitude ao mesmo tempo imperialista e anticolonial, os EUA adotaram em 2001 a ideia de que levariam a democracia liberal aos afegãos.

Dois anos depois fariam um experimento ainda mais radical, no Iraque, onde os efeitos catastróficos se veem até hoje. Ali ainda havia petróleo para justificar em termos de “realpolitik” o discurso civilizatório, porém tudo se resumia a considerações de estabilidade regional no caso afegão.

Biden resolveu desfazer a fantasia e colocar sua visão de forma objetiva: os EUA deveriam ter saído de lá há anos, e os afegãos que se entendam com o Taleban agora.

Isso foi reforçado numa manifestação, nesta segunda (16), em que o democrata mostrou empatia nula ante as cenas dantescas de civis se agarrando ao trem de pouso de aviões americanos.

Eles só queriam deixar a capital afegã, temendo seu destino nas mãos talebans após aceitarem os termos da presença ocidental e, às vezes, colaborar com ela.

Biden aposta que os radicais irão se moderar para encontrar um lugar ao sol no mundo, impedindo a volta do emirado brutal e santuário de terroristas, ainda que o preço a pagar sejam as cenas imorais em Cabul e talvez mais um país na esfera econômica da China.

Foi corajoso no plano, imprudente na execução e insensível ao comentar o estrago. O resultado político é incerto, mas ele conseguiu uma Saigon para chamar de sua, na repetida analogia com a retirada do Vietnã, há 46 anos.

editoriais@grupofolha.com.br

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