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Zelo e autonomia

Conduta de Aras mostra necessidade de mais contrapesos à ação do procurador

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O procurador-geral da República, Augusto Aras - Pedro Ladeira/Folhapress

Não faltam exemplos para demonstrar a falta de zelo com que o procurador-geral da República, Augusto Aras, exerce as atribuições fundamentais conferidas pela Constituição de 1988 ao cargo que ocupa há quase dois anos.

Desde o início da pandemia do coronavírus, o chefe do Ministério Público Federal se comporta como espectador passivo diante da negligência de Jair Bolsonaro no enfrentamento da calamidade, indiferente às ações do presidente para sabotar as medidas sanitárias.

O chefe do Executivo investe contra a ordem democrática, ofende ministros do Supremo Tribunal Federal e espalha mentiras para tumultuar as eleições que se avizinham, mas Aras assiste inerte a tudo, como se não fosse com ele.

Em vez de instaurar inquéritos para examinar a conduta do mandatário e coletar as provas necessárias para responsabilizá-lo, o procurador subserviente faz pouco das evidências à vista de todos e recorre a procedimentos administrativos protelatórios para não agir.

Pesquisadores da Fundação Getulio Vargas que estudaram centenas de ações movidas contra o governo Bolsonaro no Supremo concluíram que a Procuradoria-Geral endossou os argumentos do Palácio do Planalto em 87% dos casos em que se manifestou.

À frente da instituição incumbida pela Carta de defender os interesses da coletividade e vigiar o poder, Aras se mostra dócil com os que abusam de suas prerrogativas e inclemente com os que se opõem aos desmandos.

O alinhamento a Bolsonaro lhe garantiu o cargo há dois anos e abriu caminho para sua recondução agora. Nas duas ocasiões, o presidente desdenhou os nomes da lista tríplice apresentada pelos membros do Ministério Público, rompendo uma tradição respeitada por seus antecessores desde 2003.

Tudo indica que Aras terá sua nomeação confirmada após a sabatina marcada pelo Senado para a próxima terça (24). Como muitos senadores são alvos de processos no STF, nenhum deles quer briga com o procurador-geral, ainda mais tratando-se de alguém maleável como o atual ocupante do posto.

Diante da convergência de interesses que o preserva no cargo, os mecanismos de controle previstos pela legislação em vigor têm se revelado insuficientes.

O procurador-geral que se recusa a praticar os atos que lhe competem ou é desleixado no cumprimento de suas funções está sujeito a processo por crime de responsabilidade no Senado e afastamento do cargo, mas denúncias apresentadas contra Aras têm sido arquivadas sumariamente.

Cabe ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, órgão administrativo presidido pelo procurador-geral e composto em sua maioria por membros do topo da carreira eleitos por seus pares, examinar acusações de crimes comuns contra o chefe da instituição.

Aras foi alvo de três representações criminais nos últimos meses, assinadas por senadores e procuradores aposentados, mas manobras de seus aliados no conselho conseguiram impedir até aqui a abertura de investigações.

São recomendáveis, como se constata a partir da experiência recente, medidas que submetam os poderes do procurador-geral a novos contrapesos e ao mesmo tempo reforcem a autonomia da instituição que ele representa.

Tornar obrigatório no processo de escolha do procurador-geral o uso da lista tríplice com os mais votados pelos integrantes do Ministério Público, como já defendeu esta Folha, seria um passo essencial para restringir a discricionariedade do presidente e aumentar a independência do indicado.

Afigura-se necessária também a criação de procedimentos para revisão dos atos do procurador-geral nas investigações que envolvam autoridades com foro em tribunais superiores, entre elas o presidente da República e os membros do Congresso Nacional.

Desse modo, sempre que o procurador-geral propusesse o arquivamento de um inquérito ou ação penal, o tribunal teria a opção de submeter o caso ao Conselho Superior do Ministério Público Federal para que opinasse, como já é possível em instâncias do Judiciário.

Bolsonaro não se cansa de estimular o servilismo de Aras com a oferta de recompensas. Desde que o indicou, acena com a possibilidade de nomeá-lo para uma cadeira no STF assim que tiver a chance de preencher uma nova vaga na corte.

Seria bem-vinda, portanto, a adoção de uma quarentena para o procurador-geral, a exemplo das restrições impostas a ministros, diretores do Banco Central e outros funcionários que deixam o setor público para atuar no setor privado.

A legislação vigente proíbe, por exemplo, juízes e membros do Ministério Público que se aposentam de advogar nos tribunais em que atuavam por três anos após o desligamento da função pública.

Uma barreira semelhante, com prazo a definir, poderia impedir barganhas como a entretida pelo atual procurador-geral com Bolsonaro, impedindo que os ocupantes do cargo o transformassem em trampolim para suas ambições e usassem a independência do cargo como escudo para a desídia.

editoriais@grupofolha.com.br

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