Descrição de chapéu
Luciano Elia

Curso de graduação em psicanálise: a falácia autorizada

Proposta promove a mercantilização mais rasteira do método terapêutico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luciano Elia

Professor titular de psicanálise do Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas do Instituto de Psicologia da Uerj;psicanalista membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise

De saída, uma constatação: não é em qualquer cenário político que a criação de um curso de graduação em psicanálise é aprovada pelo Ministério da Educação de um país, na surdina, sem qualquer debate público prévio e amplo a respeito da questão com a comunidade psicanalítica e científica concernida.

No atual cenário político brasileiro, não é anódino que um centro universitário particular proceda ao lançamento —e obtenha autorização do MEC para isso— um curso de graduação em psicanálise, no formato EAD (ensino a distância), quatro anos de duração, abrindo precedente para uma enxurrada de cursos análogos, todos deformando brutal e escandalosamente a formação do psicanalista que, em nenhum outro lugar do mundo, assume este formato de um curso de graduação universitária.

Em 130 anos de existência da psicanálise, um consenso sempre se estabeleceu na comunidade psicanalítica, a despeito da diversidade de suas orientações teórico-clínicas: a formação do psicanalista jamais poderia formular-se em termos de um "curso universitário de graduação profissional", devendo ser feita não apenas após a graduação universitária como também fora do âmbito e dos parâmetros acadêmico-universitários.

Um curso de graduação necessariamente habilita aquele que o conclui ao exercício de uma profissão regulamentada por lei. A psicanálise, por sua vez, não pode constituir-se como uma profissão regulamentada, exatamente em função de sua estrutura como campo de saber e de experiência. Ela se organiza em função do rigor de seus parâmetros epistemológicos, éticos e discursivos, em torno da impossibilidade de padronizar a formação do psicanalista. Por estruturar-se em torno do inconsciente —descoberta fundamental de Sigmund Freud—, a psicanálise não admite, na formação de seus operadores, o modelo definido pelos estreitos parâmetros do conhecimento acadêmico.

Pretende-se, falaciosamente, difundir esse tipo de curso como instrumento de "democratização do acesso" à psicanálise, tradicionalmente cara e elitista. Demonstramos, ao contrário, que a elitização da psicanálise (que não precisa ser negada) é um processo histórico, não uma decorrência estrutural do discurso psicanalítico, onde não se encontra um só fundamento que justifique qualquer vinculação preferencial da prática da psicanálise a uma classe social, nível de instrução, ideário valorativo de classe, aspectos que sempre dependem do nível socioeconômico.

Na verdade, além de descaracterizar completamente o campo psicanalítico, violentando seu estatuto como laço social peculiar, como modo de produção de saber e como práxis, o que essa proposta promove é a mercantilização mais rasteira da psicanálise, na lógica neoliberal cientificamente mais degradada, e financiá-la em parcelas a perder de vista nos cartões de crédito educativo. A verdadeira democratização da psicanálise só pode ser feita pelo alto e não pelo baixo nível: queremos o melhor para todos, o ouro em pó de uma psicanálise para todos, não a distribuição dos dejetos de uma degradação epistêmica e clínica daquilo que nem mais poderia ser chamado de psicanálise —ainda que se lhe impute, abusiva e desrespeitosamente, este nome.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.