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Ligia Bahia

A 'fake health' de Queiroga

Ministro faz mal à Saúde ao atuar como o paladino da competição empresarial

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Ligia Bahia

Doutora em saúde pública, é professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Deve ter mesmo uma "caveira de burro" enterrada no Ministério da Saúde. O ministro Marcelo Queiroga, em artigo publicado nesta Folha ("‘Open health’ é questão de tempo, coragem e decisão", 6/3), reenviou um vale-presente do governo para as empresas de planos de saúde.

Seu texto anuncia a segunda versão para a implementação do denominado "open health", uma plataforma para facilitar as transações comerciais das operadoras. Ao insistir na mesma ideia, apresentada em meados de janeiro, sempre pela imprensa, o ministro a justifica pela necessidade de assegurar a concorrência entre as empresas.

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A professora Ligia Bahia, da UFRJ, especialista em saúde pública - Sérgio Lima - 10.out.17/Folhapress

Sinteticamente, consistiria na reunião de informações para que empresas e clientes possam superar dificuldades na hora da compra ou troca de planos de saúde. Na versão anterior, dados sobre saúde seriam acessados para calibrar o preço das mensalidades. Produtos mais baratos poderiam ser comercializados para pessoas que potencialmente utilizam menos serviços. Críticas de pesquisadores e das próprias empresas à "proposta-opinião" de Queiroga alertaram sobre irregularidades do uso de dados sensíveis de cidadãos para expandir a venda de planos privados.

Na tentativa de remendar um "open health" que já era mal-ajambrado, Queiroga recuou, mas fingindo que dobrou a aposta. Agora, a autoridade máxima da Saúde do país declara que haverá dois sistemas de informação: um financeiro, exclusivo para quem tem plano de saúde; e outro com dados pessoais de saúde, epidemiológicos e assistenciais, para toda a população. Botou no mesmo saco a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), instituída em 2020 para registrar e permitir troca de dados individualizados sobre saúde, orientada pelas diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados, junto com um cadastro tipo "SPC", contendo informações sobre o tipo de plano e o perfil do pagador de mensalidades.

Um sistema de informações de base populacional abrangente e qualificado é mais do que bem-vindo. Atualmente, vemos nas ruas pessoas carregando sacos de exames —quem transporta dados e se esforça para relatar atendimentos anteriores são os pacientes. Frequentemente, quem muda de cidade, médico ou plano de saúde tem que começar tudo de novo. Unificar informações permite avançar o monitoramento das tendências de adoecimento e mortalidade e avaliar a efetividade de diagnósticos e tratamentos. Já o instrumento de controle de bons clientes para os planos parece inútil.

A comercialização de planos individuais para os segmentos que trabalham na perene informalidade, com rendimentos relativamente baixos, é um desejo antigo de parte das empresas. Mas o conhecimento detalhado sobre trajetórias financeiras tem baixo interesse para transações baseadas em pré-pagamento.
No início dos anos 1990, o setor suplementar experimentou vender planos individuais mais baratos e com restrições assistenciais e carências abusivas. As consequências previsíveis foram rotatividade e inadimplência. Empresas ganharam a rodo porque retinham o pagamento das mensalidades dos clientes até quando eles podiam suportar.

Quando falta dinheiro para a comida, o boleto não quitado é o do plano de saúde. A obsessão pela ampliação da assistência suplementar, mesmo após a tragédia da pandemia, é mais um erro crasso da série "SUS esquálido", o mesmo cometido antes e durante a dramática passagem da Covid-19. Seria pedir demais um ministro da Saúde preocupado com as relações entre desmatamento, contenção da emissão de gases de efeito estufa e emergência de viroses com potencial pandêmico. Mas abdicar de assuntos como vacinação e aquisição de novos medicamentos comprovadamente eficazes, inclusive para Covid e cânceres, para atuar como o paladino da competição empresarial é em si um maleficio à Saúde.

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