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Daniela Rorato

'O cromossomo do amor'

Dia Internacional da Síndrome de Down merece reflexão sobre capacitismo estrutural

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Daniela Rorato

Gestora de soluções inclusivas, empreendedora social e ativista que atua em defesa dos direitos da mãe cuidadora

Há 25 anos nasceu meu filho com trissomia do cromossomo 21, popularizada como Síndrome de Down (SD). O tempo me permitiu perceber o capacitismo estrutural em diferentes camadas, algumas bem cruéis, como atribuir funcionalidade às pessoas com SD para que fossem aceitas e incluídas.

Nesta segunda-feira (21), Dia Internacional da Síndrome de Down, aproveito para dividir impressões acerca de um discurso antigo, que ainda está incumbido no debate da inclusão de pessoas com SD: o de como são funcionais, capazes de absorver o formato padronizado da sociedade e, portanto, merecem ser incluídas.

Uma narrativa que traz sempre uma obrigação funcional atrelada: "eles podem ter uma vida praticamente "normal" ou aprendem a ler, são capazes de trabalhar ou morar sozinhos, namoram e até casam —e tudo não passa de um "cromossomo do amor". A publicidade e as redes sociais ampliam esse conceito. Como a propaganda antiga que mostrava uma moça com SD tocando bateria e afirmando, eufemisticamente, que era diferente apenas por tocar o instrumento, tudo arrematado com o slogan "ser diferente é normal".

Ser "normal" sempre foi uma armadilha do capacitismo estrutural. O conceito de normalidade caiu por terra, não cabe mais numa sociedade inclusiva. É preciso a aceitação de que o legal mesmo é ser diferente. Disto implica a neurodiversidade. Somos 8 bilhões de diferentes no mundo; cada um é único e merece respeito às suas limitações neurológicas e cognitivas.

O cromossomo extra da SD acarreta um conjunto de sintomas difíceis e, muitas vezes, comorbidades associadas. Além da deficiência intelectual (DI), todos têm hipotonia muscular e necessitam de reabilitação física; 40% dos nascidos têm cardiopatias congênitas e graves; estima-se que de 19% a 39% têm disfunções neurológicas e também estão no espectro autista. As dificuldades existentes se multiplicam nestes casos, mas o discurso social que é refletido na publicidade segue retratando a pessoa com Síndrome de Down sempre campeã e com atitudes de superação. Onde estão os que não se superam? A diversidade nunca será respeitada enquanto tenhamos que demonstrar que somos viáveis.

A eufemização de qualquer deficiência impede a transformação social. Não são as pessoas com SD que têm que provar capacidades, mas sim a sociedade que deve se transformar para integrar a todos em suas neurodiversidades, destruindo barreiras e paradigmas.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência apresenta dimensões da acessibilidade. Ela não é só arquitetônica. É instrumental, metodológica, comunicacional, digital e, principalmente, atitudinal —quando atitudes inclusivas fazem a diferença na vida de quem não absorve o padrão oferecido.

Enfatizar capacidades e sustentar este discurso dentro do debate social é impedir a criação de uma sociedade mais acessível atitudinalmente e inibir a criação de políticas públicas para pessoas com deficiências.

As características da SD, assim como qualquer deficiência intelectual, são distintas em cada um. Particularidades influenciadas por uma série de fatores biopsicossociais, como acesso à saúde, meio ambiente e cognição. Alguns, como o meu filho, não possuem autonomia para fazer a higiene pessoal, quiçá absorver a escola regular —mas possuem o mesmo direito à inclusão.

Que ninguém mais tenha que provar que é capaz para pertencer.

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