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Regina Augusto

'Noite Ilustrada' foi referência no começo da minha vida adulta

Era reconfortante ler na Folha coluna que traduzia o espírito do tempo em que vivia

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Regina Augusto

Jornalista e mestre em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, é leitora da Folha desde 1991

Meu primeiro contato com a Folha foi na faculdade de jornalismo, em São Paulo, bem no início dos anos 1990. E não foi um contato qualquer. Na Cásper Líbero, pude assistir a palestras de José Simão, que tinha acabado de inovar a crônica diária de humor jornalístico com sua coluna, que continua sendo publicada até hoje, e também de Caio Túlio Costa, que foi o primeiro ombudsman do jornal. Adorei conhecer a palavra de origem sueca e mais ainda saber o que ela significa: um crítico interno pago para ser a voz dos leitores dentro do jornal. E me surpreende que até hoje, mais de 30 anos depois, a Folha seja a única no país a instituir essa figura que é a minha primeira leitura nas edições de domingo.

O início da minha relação com a Folha foi profissional, pois, como "foca" (como são chamados os jornalistas em início de carreira), tinha que ter repertório e ser bem informada. Com o tempo, essa relação passou a ser pessoal. Comecei a me acostumar com o jornal, com seus colunistas e com sua pegada editorial —que nem sempre aprovo, mas que me parece coerente com a proposta do veículo.

Olhando agora em retrospecto, o meu grande "crush" ao longo destes anos todos foi a coluna Noite Ilustrada, assinada pela jornalista Erika Palomino, de quem virei fã e lia com muito entusiasmo. Aquela emergente cena clubber de São Paulo nos anos 1990, com seus códigos visuais, musicais e figuras encantadoras, me fascinava. Nascida e criada na periferia e até os 19 anos sob o manto de uma religião evangélica linha-dura, aquela abertura a um novo mundo trazido pela Noite Ilustrada era minha companhia na construção de referências na fase inicial da minha vida adulta. Eram drag queens, gays, gente tatuada, estilistas desconhecidos e pessoas soltas em geral que tinham como denominador comum o desprezo pela burguesia e pelo status quo e o fato de gostarem de um novo estilo de música —a house music e o tecno, que estavam nascendo naquele momento, e irem a clubes noturnos.

Foi com as dicas da Noite Ilustrada que comecei a frequentar alguns dos locais icônicos da noite paulistana, como Espaço Retrô, A Lôca e Massivo, onde vi pela primeira vez um beijo gay. Como mulher, negra, hétero e cis, aquele universo todo era muito novo para mim e tinha como pano de fundo a liberação sexual. Era reconfortante ter um lugar na Folha que traduzia o que se passava nos lugares que eu frequentava. Uma certa dose de Zeitgeist.

É exatamente essa tradução do espírito do tempo o que mais me atraiu no jornal ao longo dessas três décadas como leitora. Sinto, no entanto, que hoje, em 2022, por diversos motivos, a Folha, que tanto soube retratar nas suas páginas de forma tão inovadora pautas identitárias muito antes de este conceito existir, pode esbarrar em alguns deslizes importantes em nome da bandeira da pluralidade.

O recente ingresso de colunistas negros e negras às suas páginas, o programa de trainee só para jornalistas negros e uma maior cobertura de temas ligados à diversidade têm de vir acompanhado de uma leitura mais crítica com relação à pauta racial. Afinal, nestes tempos distópicos em que vivemos, onde a defesa da liberdade de expressão se torna justificativa para a propagação de ideias abjetas e criminosas, a Folha poderia rever algumas de suas escolhas para continuar sendo relevante e fazendo a diferença na vida de seus leitores.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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