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Irene Abramovich

É correto liberar o teleatendimento médico em farmácias? NÃO

Há claro conflito de interesses em realizar consultas em ambiente comercial

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Irene Abramovich

Médica e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)

É preciso cuidado com as modalidades de teleatendimento quando realizadas em farmácias e/ou drogarias, especialmente quanto à ética e à legalidade, entre outros motivos, pois aqueles que estão necessitando de ajuda em relação à sua saúde merecem respeito, prudência e, minimamente, um local seguro e confidencial, no qual possam explanar suas queixas. Os pacientes creem, principalmente, que quem presta o cuidado tem conhecimento para tal. Essa é a promessa que o médico faz, desde a sua formação.

Como seria possível salvaguardar a relação hipocrática médico-paciente, alicerçada em confiança mútua, em situação na qual o atendido nem sequer sabe direito quem está consultando, de onde está conduzindo seu tratamento?

Quanto mais se reflete sobre o assunto, mais dúvidas deontológicas, éticas e até práticas surgem no cenário. Por exemplo, o médico pode estar em qualquer local do país. Caso solicite exames complementares, o paciente vai realizá-los onde? Quem interpreta os resultados? O colega de plantão na teleconsulta?

Como será o vínculo do médico com o paciente e de onde o profissional receberá seus honorários? Vale lembrar que a legislação, como um decreto de 1932 e o Código de Ética Médica, vedam interação ou dependência de farmácia e mesmo exercer simultaneamente medicina e farmácia. E continuam os questionamentos. Como seria a seleção de médicos a atuarem nesses estabelecimentos? De que forma garantir que seja um médico, preferencialmente um especialista?

Suponhamos que, sim, aquele que recebe a chamada online seja de fato um médico. De que forma o paciente terá garantida a prerrogativa ética e legal de contar com um prontuário preenchido em cada avaliação, com os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, assunto que conta com amplo leque de regras, normas e legislação específica?

No teleatendimento em farmácias, como ocorreria a guarda do prontuário, documento considerado um dos pilares para um atendimento ético? O médico teria que levá-lo para casa ou guardá-lo no computador local? Na "nuvem"? Deixar sob a custódia de funcionários do estabelecimento, não familiarizados com o dever do sigilo?

Na verdade, entre os problemas mais graves embutidos no contexto de atendimento médico em ambientes comerciais é o fato de facilitar conflito de interesses, no qual o julgamento de um profissional tende a ser indevidamente influenciado por interesse secundário. Os tipos de vínculos que os médicos teriam, por exemplo, com as farmácias e os planos de saúde, levariam a um conflito generalizado de interesses, um triplo conflito entre esses atores.

Por fim, sabe-se que a telemedicina ganhou espaço em decorrência da tragédia trazida pela Covid-19. Mantém-se no Código de Ética Médica, porém, a proibição ao médico de prescrever sem exame direto do paciente, salvo em urgência e emergência, assim como consultar e diagnosticar por meios de comunicação de massa, até mesmo em atendimento à Lei do Ato Médico.

Atendimentos a distância, como no caso das farmácias e/ou drogarias, quando se relacionam à telemedicina passam pelo crivo do Conselho Federal de Medicina (CFM). Nada que se alie a esta nova "modalidade" de atendimento em farmácia, que soa mais como "uberização" da medicina, na qual quem estiver livre e mais perto do computador será responsável pela vida daquele do outro lado da tela.

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