Descrição de chapéu
Jason Tércio

A guerra da Ucrânia e o paradoxo das esquerdas

Obcecadas com o 'imperialismo americano', fazem uma interpretação reducionista do conflito

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jason Tércio

Escritor e ensaísta, é autor de "A espada e a Balança - Crime e Política no Banco dos Réus" (Zahar), "Em Busca da Alma Brasileira" (ed. Sextante), biografia de Mário de Andrade, e outros livros

Por suas vastas implicações internacionais no presente e possivelmente no futuro, a invasão da Ucrânia pela Rússia causou a guerra mais problemática e mais divisionista dos últimos tempos. Em todas as vertentes ideológicas há conflitantes opiniões e teorias explicativas que apoiam, condenam ou justificam a decisão russa.

As esquerdas brasileiras, de modo geral, estão apoiando a Rússia, às vezes sob uma mal disfarçada neutralidade. Militantes, acadêmicos e políticos têm abraçado a tese de que a guerra é uma disputa por procuração entre os Estados Unidos e o polo emergente no eixo Rússia-China, onde estaria se formando um novo bloco hegemônico capaz de romper a ordem mundial unipolar existente desde o fim da Guerra Fria e da União Soviética.

Ataques russos em Odessa, na Ucrânia, destroem histórica catedral ortodoxa - Getty Images

Apoiar a Rússia, portanto, segundo essa visão esquemática, seria ajudar a construir um mundo novo, multipolar, mais justo, sem a hegemonia única do "imperialismo americano" e seus "títeres" europeus. Daí por que a maior parte das esquerdas brasileiras, ainda reverentes ao mito soviético, endossa o pretexto do presidente Vladimir Putin para bombardear a Ucrânia —a Otan avançou demais nos países vizinhos da Rússia, ameaçando sua própria soberania nacional.

Trata-se de uma falsa vulnerabilidade. Como um urso considerando ameaça à sua vida a presença de alguns ratos na porta da caverna, já que a Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo, e nenhum país da Otan no Leste Europeu tem esse tipo de armamento.

Na contracorrente das esquerdas brasileiras, seus pares da própria Rússia (à exceção do fisiológico Partido Comunista) e dos países vizinhos têm condenado vigorosamente a invasão da Ucrânia e o governo Putin. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos da região veem a guerra de ocupação como decorrência de uma crise interna russa e, no plano externo, de uma estratégia com nítido caráter imperialista.

O ucraniano Volodymyr Ishchenko, pesquisador do Instituto de Estudos do Leste Europeu na Universidade Livre de Berlim, o russo Oleg Zhuravlev, do Laboratório Público de Sociologia de Moscou, e a ucraniana Oksana Dutchak, vice-diretora do Centro de Pesquisa Social e Trabalhista, são alguns da esquerda independente eslava com essa posição —e eles têm uma percepção mais completa do conflito, pois unem conhecimento teórico e vivência de uma região complexa e historicamente turbulenta.

Para eles, essa guerra é tão reacionária quanto o próprio governo Putin e está servindo apenas aos interesses das classes dirigentes russas, que não conseguiram sustentar uma liderança política, moral e intelectual estável na era pós-soviética.

Tanto que, em 2012, começou uma crescente onda de protestos populares contra fraudes ocorridas nas eleições legislativas para a Duma no ano anterior. A reação do Estado russo sob o comando de Putin foi fechar cada vez mais os espaços democráticos. Com a anexação da Crimeia e a invasão da Ucrânia, vieram o cerco à imprensa e a repressão a protestos e às liberdades fundamentais, inclusive direitos de reunião e de greve.

Portanto, as esquerdas brasileiras, obcecadas com o "imperialismo americano", fazem uma interpretação reducionista da guerra, como se fosse apenas uma disputa geopolítica entre Moscou e Washington. Como declarou o historiador e ativista ucraniano Taras Bilou ao site OpenDemocracy, "se as esquerdas continuarem culpando só a Otanpela invasão da Ucrânia, estarão mostrando que não entenderam bem a situação".

Esse debate vai se prolongar por muito tempo, pois tudo indica que a guerra não deverá terminar neste ano —inclusive porque em março de 2024 haverá eleição presidencial na Rússia e Putin, como autocrata por vocação, vai querer mais um mandato (se nenhum imprevisto acontecer até lá).

É de seu interesse prolongar a guerra e usá-la politicamente para se apresentar ao eleitorado como única garantia de segurança e de manutenção da soberania do país, uma retórica que lhe tem rendido razoável apoio interno. Enquanto isso, as esquerdas brasileiras (e parcialmente de outros países latino-americanos) cometem um grande erro ao se posicionar na contramão da história.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.