Entenda as fases da Guerra da Ucrânia, que chega aos 500 dias

Contraofensiva problemática de Kiev e motim na Rússia marcam nova etapa do conflito

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São Paulo

O conflito entre Estados de maior importância geopolítica desde o fim da Segunda Guerra, a invasão russa da Ucrânia chega a 500 dias neste sábado (8), e contando, como as incertezas de sua fase atual sugerem.

Como nas etapas anteriores, ela pode ser delimitada de forma mais ou menos precisa: no caso, 4 de junho, quando as forças de Volodimir Zelenski começaram as salvas iniciais da aguardada contraofensiva.

Passado mais de um mês, ucranianos e aliados ocidentais procuram explicações para a lentidão nos resultados esperados. Não que a situação do antípoda russo de Zelenski, Vladimir Putin, esteja confortável. Além do grande atrito que os combates geraram, o chefe do Kremlin administrou a mais grave crise interna de seus quase 24 anos no poder — o motim dos mercenários do Grupo Wagner.

Bombeiro em destroços após o maior ataque com mísseis mussos contra Lviv, no oeste da Ucrânia
Bombeiro em destroços após o maior ataque com mísseis mussos contra Lviv, no oeste da Ucrânia - Iurii Diatchischin - 6.jul.23/AFP

O efeito dessa combinação de fatores torna o desenrolar do conflito ainda mais imprevisível. A evolução mais fluida em campo pode levar tanto a um novo entrincheiramento e o prolongamento da guerra como a uma mudança que obrigue um dos lados a negociar. O dinheiro do mundo, hoje, está na primeira hipótese.

Tanto é assim que o tema central da cúpula da Otan, a aliança militar ocidental, na semana que vem, em Vilnius, capital lituana, será o fornecimento de mais armas para Zelenski —nesta quinta-feira (6), ele já se queixava de que o ritmo lento da contraofensiva era decorrente da falta de armas prometidas.

Só no primeiro ano da guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022, de acordo com o Instituto para Economia Internacional de Kiel (Alemanha), Otan e aliados deram o equivalente a R$ 837 bilhões a Kiev, ou 85% do PIB do país europeu no ano anterior. Os EUA estão à frente, com R$ 383 bilhões, R$ 231 bilhões dos quais apenas em ajuda militar —mais de dez vezes o orçamento de defesa ucraniano em 2021.

O custo em vidas é imensurável, até porque não há dados confiáveis, mas ultrapassa a casa da centena de milhares dos dois lados. Do lado civil, a ONU fala em 18 mil mortos ou feridos civis, número que a própria entidade afirma ser subestimado. Refugiados somam hoje 6,3 milhões, fora quase 6 milhões de pessoas deslocadas internamente, numa população pré-guerra de 44 milhões.

Os impactos se espraiam, seja no rearranjo frágil do fornecimento energético à Europa, na remilitarização do continente, na ascensão de China e Índia como mercados para hidrocarbonetos russos, na inflação de alimentos, no corte de Moscou do sistema internacional, na pressão sobre países não alinhados, como o Brasil, e na volta do fantasma de uma Terceira Guerra Mundial.

A seguir, um resumo breve dos 500 dias da Guerra da Ucrânia.

FASE 1 - Choque, pavor e fracasso

Após quatro meses de preparação a céu aberto e ultimatos, Putin tentou algo que a Rússia nunca havia feito: uma invasão ao estilo "choque e pavor" usada pelos americanos nas suas guerras no Golfo Pérsico.

Chuva de mísseis de precisão e ataques em três frentes simultâneas, com emprego de forças aerotransportadas e colunas blindadas. O Pentágono achou que Kiev cairia em três dias.

De fato, no segundo já havia combates nos subúrbios da capital, mas era ilusório. Problemas logísticos, soberba e falhas táticas, somadas à reação rápida dos ucranianos, levaram ao fracasso na conquista da capital, o que animou o Ocidente a transformar o conflito, na prática, em uma guerra por procuração.

A primeira fase se mostrou encerrada com o anúncio da mudança do foco russo para o Donbass, o leste russófono cuja guerra civil entre ucranianos e separatistas pró-Kremlin já durava oito anos. Apesar da debacle, os russos fizeram conquistas importantes nessa etapa, avançando em boa parte do sul do país.

FASE 2 - Donbass e Mariupol

A batalha do Donbass começou no dia 18 de abril de 2022, com ataques coordenados de mísseis.

Trata-se de um terreno tão complexo que, mesmo com a tomada quase total da província de Lugansk, a de Donetsk segue contestada até hoje. Na realidade, é uma fase que não chegou a acabar, sobrepondo-se às outras na guerra. Foi um momento de reagrupamento para Kiev, que ainda conseguiu vitórias simbólicas, como o afundamento da nau capitânia da Frota do Mar Negro da Rússia, o Moskva.

Por outro lado, Moscou conseguiu conquistar o porto de Mariupol, em boa parte reduzido a ruínas, numa batalha sangrenta que lhe garantiu a consolidação da ponte terrestre entre Rússia, Donbass e a península da Crimeia, anexada por Putin em 2014.

FASE 3 - A reação de Kiev

Com o início do envio de mísseis de mais longo alcance e precisão dos EUA, a Ucrânia começou a tomar iniciativas visando a recuperar território. Lançou sua primeira contraofensiva em 29 de agosto contra Kherson, no sul, mas seu grande sucesso veio num ataque surpresa contra posições desguarnecidas da frente russa em Kharkiv, província que foi praticamente toda retomada.

Neste momento, Putin pôs em marcha uma tentativa de redesenhar o mapa ucraniano e promoveu referendos altamente questionáveis para, como fizera na Crimeia, anexar Kherson e Zaporíjia, no sul, e Donetsk e Lugansk, a leste. O fez com pompa no Kremlin em 30 de setembro e aumentou suas ameaças nucleares. Na prática, não tinha controle sobre tudo o que anexou, mas sinalizou as fronteiras que talvez o satisfaçam numa negociação, excisando 20% da Ucrânia.

Ciente do peso que a falta de soldados teve no início da guerra, Putin lança uma campanha de mobilização de reservistas que se mostrou polêmica, mas adicionou 320 mil soldados às suas forças, a levar em conta dados oficiais. Tão ou mais importante, combates desde então mostraram melhora do desempenho tático russo, adaptando doutrinas rígidas ao ambiente saturado de tecnologia.

FASE 4 - Jogo de pressão

No dia 8 de outubro, os ucranianos conseguiram mais um feito simbólico, explodindo um caminhão-bomba e danificando a ponte da Crimeia, estrela do projeto de anexação de Putin, que liga a península à Rússia. Dois dias depois, Moscou iniciou uma campanha para degradar a rede de energia da Ucrânia nos meses mais frios do ano, com ataques quase semanais que duraram até o começo deste ano.

Enquanto isso, os mercenários do Grupo Wagner apertaram o cerco à estratégica Bakhmut, em Donetsk, abrindo o capítulo mais cruel da guerra, o "moedor de carne" que matou milhares —16 mil admitidos pelas forças de Ievguêni Prigojin, às turras com o Ministério da Defesa russo.

A pressão veio também do lado ucraniano. Ataques com drones passaram a atingir mais cidades na Rússia, que também viu algumas ações de sabotadores infiltrados. Isso culminaria em danos a bombardeiros de emprego nuclear e, em março, ações contra Moscou.

Mais importante, em 9 de novembro, os russos deixaram a capital homônima da província de Kherson, tornada indefensável, e estabeleceram o rio Dnipro como sua nova linha defensiva, iniciando um processo de entrincheiramento que duraria meses.

O atrito em Bakhmut avançou até maio, com a vitória do Wagner. Mas uma nova realidade da guerra já se desenhava, marcada também por duas viradas no ânimo ocidental de apoio: o envio de tanques pesados, a maioria Leopard-2 alemães, mais mísseis e baterias antiaéreas. Além disso, a discussão sobre o fornecimento de caças, algo antes tabu por ensejar um conflito mais direto com os russos.

FASE 5 - A contraofensiva e o motim

Chegamos ao ponto atual, com a contraofensiva lançada em junho passado por Zelenski que, até aqui, não passou do estágio probatório de defesa e de atrito para impor perdas aos russos —e aí mora o problema de Kiev: receber também perdas sem a mesma capacidade de reposição de pessoal.

Autoridades de defesa ocidentais defendem que é assim mesmo e que o grosso dos ataques não ocorreu ainda, mas o presidente ucraniano mantém um discurso de pressão.

Na teoria, o objetivo da ação é romper a ponte terrestre e isolar a Crimeia, mas isso tem se mostrado difícil. A chegada de mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow facilitou, contudo, ataques à infraestrutura da península, mantendo a pressão local.

Para adicionar opacidade ao cenário, na primeira semana da contraofensiva uma explosão destruiu a barragem de Nova Kakhovka, cujo reservatório no rio Dnipro atendia canais de irrigação, o resfriamento da usina nuclear de Zaporíjia e uma unidade hidroelétrica. O desastre ambiental que se seguiu foi enorme, com terras arrasadas nas duas margens do rio até sua foz no mar Negro.

Padrão no conflito, ambos os lados se acusam pelo episódio, o que se repete agora com as falas de Kiev e de Moscou acerca de uma eventual explosão da usina de Zaporíjia. Militarmente, ambos aferiram vantagens e desvantagens, com um escore mais favorável aos russos. Enquanto isso, a carta nuclear volta à mesa com o anúncio da instalação de ogivas táticas, de uso mais restrito, por Putin na Belarus. Como resposta, a Polônia já pediu que a Otan posicione bombas americanas em seu território.

Mais imprevisível, contudo, foi o motim de Prigojin nos dias 23 e 24 de junho, uma história inconclusa que demonstrou uma instabilidade interna na Rússia que não se conhecia, mas que pode servir a alguns objetivos de consolidação de poder do presidente ao fim.

A revolta mercenária foi debelada com alguns telefonemas mediados pelo ditador belarrusso, Aleksandr Lukachenko, e uma dúzia de pilotos russos abatidos. É a batalha mais nebulosa desta guerra até aqui —e não será a última.

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