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Frei Betto

Propósitos de Natal

Trafegarei pelas vias interiores e não temerei as curvas abissais da oração

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Frei Betto

Assessor de movimentos populares e escritor, é autor de “Tom Vermelho do Verde” e “A Arte de Semear Estrelas”, entre outros

Neste Natal, farei da solidão abrigo, cotizarei o valor de cada palavra e a importância do recuo para agilizar o salto, confiante de que é preciso aprender a fechar os olhos para ver melhor.

Todo fim de tarde, acenderei as luzes da cidade e cuidarei de não apagar as sombras nem permitir que os ruídos do dia invadam a noite e provoquem desatenção nas corujas.

Colecionador de memórias, não deixarei o tempo apagar-se, reinventarei o passado disfarçado de futuro, recolherei em fotos e pinturas as paisagens do olvido, reativarei a lembrança dos velhos e não admitirei que a nostalgia camufle o sangue que adubou esperanças.

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O escritor Frei Betto - Karime Xavier/Folhapress - Folhapress

Não sonegarei a palavra carregada de afeto, calarei ofensas e não me comprazerei na desgraça alheia. Esvaziarei o coração de toda empáfia, jamais imprimirei arrogância à voz e me curvarei solidário a quem padece dessas pequenas desavenças humanas que inflam como grandes problemas.

Alumiarei de indagações os passos vividos e conservarei respostas no jardim onde planto utopias, sem nunca desdenhar o saber do desvalido, o rumo dos ventos e as manhãs de domingo, confiante de que a existência é o pingo de chuva que, ofertado entre trovões, logo se esvai aquecido pelo sol.

Neste Natal, estenderei as mãos aos que praguejam sobre o solo árido de suas vidas sem garimpar alegrias, e aos que amarram o espírito em teias de aranha sem se dar conta de que os dias tecem destinos. E abraçarei os que desaprenderam o sorriso e abandonaram ao olvido a criança que neles residia.

Serei compassivo com os que perambulam às margens da memória e semeiam ódio no quintal da amargura; guardam dinheiro na barriga da alma e penhoram a felicidade em troca de ambições; são náufragos de lágrimas, cegos aos arquipélagos da ventura, e fantasiam de asas as suas garras para voejar em torno do próprio ego.

Abrirei meu coração aos que escondem o sol no armário, apagam a luz das estrelas e põem espessas cortinas no limiar do horizonte. E aos que acolhem o rumor de anjos, nunca fecham a janela ao porvir e, embriagados de chuvas, ofertam luas à namorada e fazem da poesia a sua lógica.

Irei ao encontro dos colecionadores de araucárias que enfeitam de sonhos suas florestas e, na primavera, colhem frutos de plenitude. E dos que brincam de amarelinha ao entardecer e repartem nas esquinas moedas de sol. E me apartarei dos que, ao desjejum, abrem sua caixa de mágoas e recontam uma a uma para anotar nos cadernos do afeto dívidas e juros.

Neste Natal, caminharei sobre tatames e, por ter muita pressa de chegar, jamais correrei. E darei socorro aos navegadores solitários, pilotos cegos e peregrinos mancos, que se arrastam pelas trilhas da desesperança.

Erguerei meu cálice aos trovadores do inaudito, aos fazendeiros do ar e aos banqueiros da generosidade, que conhecem o segredo de fazer brotar alvíssaras da escuridão. E olharei com suspeita os que mantêm, em cada esquina, oficinas de conserto do mundo, mas desconhecem as ferramentas que arrancam as dobradiças do egoísmo.

Descobrirei Deus escondido numa compota de figos em calda ou no vaga-lume que risca um ponto de luz na noite desestrelada. E nos que aprendem a morrer todos os dias para os apegos de desimportância e, livres e leves, alçam voo rumo ao oceano da transcendência.

Não plantarei corvos nas janelas da alma, nem embeberei o coração de cicuta. Ousarei sair pelas ruas a transpirar bom humor, cultivarei ninhos de pássaros no beiral da utopia e colecionarei no espírito as aquarelas do arco-íris. Trafegarei pelas vias interiores e não temerei as curvas abissais da oração.

Reverenciarei o silêncio como matéria-prima do amor e arrancarei das cordas da dor melódicas carícias. Recostado em leitos de hortênsias, bordarei, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.

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