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Fernando Cássio

É adequado usar inteligência artificial para preparar planos de aula? NÃO

São Paulo repisa cantilena de modernização que estreita horizontes educativos

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Fernando Cássio

Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Há poucos meses, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) tentou substituir livros didáticos fornecidos pelo MEC por slides cheios de erros. O governo paulista individualizou responsabilidades e debelou o escândalo.

Agora anuncia que pretende utilizar inteligência artificial para preparar materiais de aula com conteúdo sinóptico a ser memorizado pelos estudantes. A "aprendizagem" será testada em avaliações realizadas em casa ou na escola, com ou sem ajuda, individualmente ou em grupo. Contanto que as provas sejam online e sirvam para revelar o toque de Midas do empresário da tecnologia e secretário da Educação, Renato Feder, na melhoria dos indicadores —pouco importa a validade dos resultados.

Alunos de ensino médio de escola estadual de SP fazem atividade de redação em plataforma que corrige os textos por inteligência artificial; digitalização do ensino é bandeira do governo - Divulgação/Sergio Barzaghi/EducaçãoSP

Automatizar processos educativos —tarefa que qualquer educador sabe ser impossível— é palavra de ordem para a maior rede de ensino do país. Reduzir custos também é, mas isso não se aplica à assinatura de plataformas educacionais privadas que, por sua vez, requerem a compra periódica de equipamentos.

A polêmica em torno do uso da inteligência artificial para preparar materiais didáticos é a ponta de um iceberg de substituição tecnológica de profissionais da educação que envolve plataformização, controle hiperburocrático do trabalho e contratos bilionários de aquisição de tablets e computadores.

Tudo gira em torno das ferramentas automatizadas: a chamada, as medidas contra a evasão escolar, a elaboração de redações (já corrigidas por inteligência artificial), a aula de matemática infantilizada para adolescentes, o "upload pro forma" de tarefas (vale até receita de bolo, confessam os estudantes).

Convertidos em capatazes digitais, supervisores e diretores cobram de professores e estudantes a assiduidade no acesso às plataformas que regulam cada aspecto da vida escolar. A Seduc-SP atribui notas e estabelece um ranking entre escolas e diretorias de ensino, a partir do qual decide quais diretores serão afastados dos cargos. A legalidade dessa operação está por ser analisada.

Os fanáticos do tecnosolucionismo juram que o objetivo é liberar tempo para o que realmente importa na escola. Pois na rede paulista ocorre o contrário: professores e diretores que não seguem a cartilha governamental da mediocridade são punidos pelo trabalho sério. Amados pelos estudantes e odiados pelos que desejam aniquilar o pensamento crítico na escola pública.

Convocações frequentes para prestar contas do acesso às plataformas oficiais sequestram o tempo de trabalho de diretores escolares que são prontamente responsabilizados quando atos de violência explodem nas escolas. Num gesto peculiar de reconhecimento do problema, o governo paulista anunciou a pretensão de privatizar parte da gestão das escolas estaduais.

Quanto aos slides, planos de aula ou coisa que os valha, nem o ChatGPT confia na inteligência artificial. É só perguntar a ele. Elementos demasiadamente humanos como conexão emocional, adaptação ao contexto, criatividade, ética e moralidade —responde a ferramenta— são insubstituíveis nos materiais didáticos.

Menos razoável do que a máquina, o governo paulista repisa a cantilena de modernização que estreita horizontes educativos e vai na contramão de países que frearam a digitalização, que emburreceu crianças e adolescentes. Deveria ser óbvio que materiais didáticos deliberadamente concebidos para rebaixar o ensino público, usem ou não inteligência artificial, serão inevitavelmente ruins.

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