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Dom Jaime Spengler

Saudade

O próprio morrer exige dignidade; viver o luto é dignificar a memória

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Dom Jaime Spengler

Arcebispo de Porto Alegre, é presidente da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil)

Saudade é coisa bonita, mas dói. Nestes dias, recordamos os entes queridos já falecidos. Encontros, amizades, relações, amores, carinho, proximidade, intimidade. Aspectos da existência humana que constroem personalidades —e que deixam marcas na memória.

A presença sempre maior do digital no cotidiano, substituindo o real pelo virtual, e a obsessão pelo cuidado com o corpo, que se quer sempre mais belo, ágil e eficiente, faz com que a possibilidade da proximidade da morte assuma aspectos desestabilizadores e trágicos. A tendência sempre maior do impor-se do imediato, do mais fácil, do aqui e agora, reduz os espaços de reflexão, ponderação e diálogo consigo mesmo. A potência do universo telemático torna insensível as distâncias, transforma as relações humanas, assimila o corpóreo ao virtual, deixa a consciência humana apática.

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Movimentação no Dia de Finados no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, em novembro do ano passado - Rivaldo Gomes - 2.nov.2022/Folhapress - Folhapress

Há quem afirme não se preocupar com a realidade da morte. O importante consistiria em viver intensamente o instante presente. A perda da relação com as etapas características da existência vai impondo um sistema cada vez mais artificial do próprio viver. Há uma tendência de ocultar, o máximo possível, a íntima relação entre a vida e a morte. Ela é sempre mais removida para os bastidores da vida pública.

Se por um lado os avanços científicos e tecnológicos estão marcados pela pretensão onipotente de um domínio incondicional do ser humano sobre a realidade, por outro a presença da morte dentro da vida cotidiana recorda a necessidade sempre presente de fazer as contas com uma concepção limitada do tempo.

A morte continua sendo recordação de algo profundamente humano: podemos tanto, mas não podemos tudo. Existem limites às nossas potencialidades. Somos também frágeis, vulneráveis, carentes, dependentes. Do tanto que é concedido ao ser humano na sua origem, ela vai, aos poucos, recolhendo tudo —até alcançar o nada.

A morte é um processo que se origina com o próprio início do viver e que se desenvolve ininterruptamente ao longo de todo o percurso da existência. O próprio morrer exige dignidade. Daí a importância do luto. Viver o luto é dignificar a memória.

Os gestos individuais de despedida diante do fato da morte, com seus ritos coletivos de "perda", são indispensáveis. A ritualidade que acompanha o luto permite trazer consigo o outro com o seu mundo.

Diante da morte, ninguém está livre; todos são pequenos e impotentes —nada. Ela, a morte, é um evento especificamente humano e diz respeito a todo o ser humano na sua totalidade. Isso implica entrar e seguir na experiência do nada por si e nada de si. Ou seja, assumir a finitude e a mortalidade humana como extensão da vida eterna e da imortalidade divina. Jesus Cristo nos revela, no processo de sua encarnação, paixão e morte na cruz. E, no total esvaziamento de si, resplandece o único critério capaz de conceder a tudo sentido, incluídos os critérios por meio dos quais também a ciência e técnica deveriam ser avaliadas, pois mais forte que a morte, "o amor" (Cântico dos cânticos 8,6)!

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