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Guita Grin Debert e Jorge Félix

População idosa e o abismo da inadimplência

Desvincular salário mínimo dos benefícios da previdência aumenta risco de superendividamento

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Guita Grin Debert

Antropóloga, é professora emérita da Unicamp e pesquisadora do CNPq e do PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp

Jorge Félix

Doutor em sociologia (PUC-SP), é professor da pós-graduação em gerontologia da USP e pesquisador da rede CuiDDe – Cuidado, Direitos e Desigualdades (Cebrap)

No debate governamental sobre o caminho para o equilíbrio fiscal (res)surge, por iniciativa do Ministério do Planejamento, a proposta de desvinculação do salário mínimo dos benefícios previdenciários, isolando esses dos ganhos reais, isto é, acima da inflação, concedidos pelas regras de reajuste anual.

A ideia tem provocado grande tensão entre os vários partidos que dão sustentação a um governo que se reconhece como uma frente pluripartidária construída em 2022 e, portanto, com diferentes visões sobre o sistema de proteção social e o papel do Estado. Esse é, porém, um ponto que delegamos aos cientistas políticos.

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Fachada de prédio do INSS na rua Santa Cruz, Vila Mariana - Zanone Fraissat/Folhapress


O interesse aqui é trazer a público alguns dados de pesquisa com o olhar do campo dos estudos do envelhecimento, em particular a condição que já denominamos nesta Folha de "financeirização da velhice". O termo diz respeito ao crescente risco de endividamento das pessoas idosas ao terem que custear serviços de cuidado e saúde privados mas que deveriam ser providos pelo Estado, ao menos em parte, em respeito às normas constitucionais.

Foi mostrado que o peso dessa nova cesta de consumo domiciliar (famílias com mais idoso) é, quase sempre, aliviado pelo endividamento, sobretudo, por meio do crédito consignado.

O problema é que a sugestão de desvinculação aparece no momento em que a Serasa registra 72,8 milhões de inadimplentes no país. E por que a situação das pessoas idosas é mais grave? Embora o grupo entre 41 e 60 anos de idade seja a maior fatia "negativada" (35%), os idosos representam 18,9% do total de inadimplentes ou 13,7 milhões.

Portanto, a ideia de desvinculação é posta na mesa quando 40% dos idosos do país estão inadimplentes. Ou seja, não conseguem viver de suas aposentadorias. Essa faixa também apresenta as maiores dificuldades de renegociação e de transferir seus empréstimos para instituições financeiras que cobram taxas de juros menores (portabilidade).


Essa condição crônica de vulnerabilidade financeira é consequência da imensa desigualdade do sistema previdenciário, agravada pelas reformas empreendidas desde os anos 1990. Em 1996, ano da primeira edição do "Boletim Estatístico da Previdência Social", os benefícios com o valor de um salário mínimo representavam cerca de 25% do total do regime geral e, atualmente, passam dos 60%, sendo que o teto da previdência é pago a menos de 1% dos aposentados. Em 25 anos, o sistema de previdência contributiva brasileiro se metamorfoseou em um sistema de assistência social –ou, como os franceses bem denominam, em um "mínimo velhice".


Se os benefícios de valor básico, portanto, forem reajustados apenas pela inflação, a hipótese mais provável é que velhice volte a ser sinônimo de pobreza –um estágio duramente vencido nas décadas passadas quando foi vitoriosa uma invejável legislação brasileira de proteção social aos idosos, desde a Constituição Federal até o Estatuto da Pessoa Idosa (lei 10.741/2003).


Apartar o aumento real do salário mínimo dos benefícios previdenciários é abandonar uma grande parte da população idosa no abismo do superendividamento, sobretudo por meio do crédito consignado, recurso utilizado hoje, principalmente, para o provimento de gastos com saúde (remédios e planos de saúde) e autocuidado. É bom lembrar que o perfil socioeconômico que recebe o benefício básico tem restrita rede de apoio social ou familiar para recorrer em caso de necessidade financeira, pelo contrário, em muitos casos é a maior renda do domicílio.

A fragilidade financeira também oferece ao sistema bancário uma clientela cativa e vulnerável. Será difícil aceitar, como insinua, por exemplo, a lei criadora do programa Desenrola Brasil, no seu Artigo 27, que a solução pode vir de educação financeira, que visa a combater uma deficiência educacional dos tomadores de crédito que precisam aprender a poupar. Essa é uma forma de responsabilização do indivíduo por seu infortúnio e encobrir que a mazela da inadimplência da população idosa é mesmo a renda baixa, o que a desvinculação só faria agravar ainda mais.

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