Podcast: Sufrágio conta como bronca em Vargas levou à conquista do voto feminino há 90 anos

Episódio de Sufrágio conta como é não ter direitos políticos e discute dificuldades que persistem em 2022

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Este projeto tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting

Brasília

Um golpe de estado, uma reforma eleitoral e uma bronca no presidente da República. O segundo episódio do podcast Sufrágio explica o que está por trás do decreto que há 90 anos deu às mulheres o direito de votar e serem votadas no Brasil.

O capítulo publicado nesta quinta-feira (1º) também discute como é a vida sem direitos políticos e quais são dificuldades que as mulheres podem encontrar em 2022 para ir às urnas.

Ouça:

A transcrição do episódio também está disponível, no final deste texto.

A cientista política Branca Moreira Alves, que entrevistou a líder sufragista Bertha Lutz nos anos 1970 e a a historiadora Mônica Karawejczyk, autora do livro "As Filhas de Eva Querem Votar" contam como o movimento sufragista aproveitou o golpe de estado de Getúlio Vargas para conquistar o voto.

A vereadora Erika Hilton (PSOL-SP), a candidata à Assembleia Legislativa de São Paulo Andrea Werner (PSB) e Denise Crispim, mãe de uma adolescente com paralisia cerebral, discutem as limitações da acessibilidade eleitoral em 2022. E os refugiados afegãos Zabiullah e Shukria contam como é viver sem poder votar.

Uma mulher de vestido na altura do joelho, salto e chapéu, com cabelos curtos, se equilibra em uma escada, prestes a subir em um avião monomotor antigo
A sufragista Bertha Lutz embarca para o Rio de Janeiro, depois de viajar ao Rio Grande do Norte para fazer campanha pelo voto, em 1928 - Wikimedia Commons

A apresentação, roteiro, pesquisa e reportagem do podcast são de Angela Boldrini. A jornalista Flávia Mantovani colaborou com reportagem neste episódio. A produção é de Jéssica Maes, e a edição de som de Laila Mouallem. A coordenação do projeto é de Magê Flores e a identidade visual de Catarina Pignato.

O Sufrágio trata da história das brasileiras na política e discute os desafios que elas têm pela frente. Os episódios são publicados sempre às quintas-feiras, nas principais plataformas de podcast.

Um cartaz de fundo roxo mostra várias mãos femininas sobrepostas
Sufrágio: Episódio dois - Votamos - Catarina Pignato

Leia a transcrição do episódio:

Faz uns meses que eu esbarro numa foto. É um retrato em preto e branco, que mostra uma mulher de cabelo curto usando um vestido na altura do joelho e um cardigã cheio de brilhos. O cabelo dela está coberto por um chapéu, mas dá pra ver que ele é escuro. Nos pés, ela usa um saltinho boneca, que lembra o sapato de dançarinas de salão.

A mulher da foto é a Bertha Lutz, uma líder feminista que apareceu no episódio passado. Se você não ouviu o primeiro capítulo desta série, eu sugiro que você volte lá e comece do começo. Se você ouviu, talvez se lembre que a Bertha era uma sufragista, ou seja, uma mulher que lutava pelo direito de votar.

E a Bertha não era qualquer sufragista. Ela era a presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a principal organização que participava dessa luta no Brasil.

Na imagem, a Bertha está subindo uma escada de madeira pra embarcar num aviãozinho. A impressão é de que alguém parou ela no meio da subida pra tirar a foto e ela se virou sorrindo -e segurando a saia, que ameaçava levantar com o vento. O avião parece saído de um desenho animado antigo: é um teco-teco onde só cabem um ou dois passageiros, que vão com a cara no vento. No fundo da foto, dá até pra ver o piloto de capacete, já pronto para a decolagem.

O avião vai levar a Bertha de volta pro Rio de Janeiro depois de uns dias em Natal, no Rio Grande do Norte. A líder do movimento sufragista tinha ido para lá em julho de 1928 pra dar um passo estratégico na luta pelo voto feminino.

A Bertha chegou em Natal no dia 8. No dia 10, a capa do jornal "A República" amanheceu com esse título aqui: "o brilhante e judicioso discurso da senhorita Bertha Lutz". Quem vai ler é a Laila Mouallem.

[Laila] Atravessei no breve espaço de quinze horas de voo os 2.300 quilômetros que separam o Rio de Janeiro de Natal, este farol luminoso que irradia suas ondas de civismo e de fé na democracia sobre o continente sul-americano.

O Rio Grande do Norte era um "farol luminoso" porque foi lá que em 1927 uma lei estadual permitiu pela primeira vez que as mulheres votassem no Brasil. E na época da visita da Bertha, as eleições municipais de 1928 estavam se aproximando.

Então, pra incentivar as mulheres do Rio Grande do Norte a votar, a Bertha topou passar quinze horas numa geringonça voadora cruzando o país. Hoje, os voos entre Natal e Rio de Janeiro duram em média três horas. E em quinze horas dentro de um avião, dá pra ir até Moscou.

Era importante pro movimento que o maior número possível de mulheres participassem, porque isso aumentaria a pressão pra que o Congresso discutisse a sério instituir o voto feminino em todo o Brasil. Desde o começo dos anos 20, as sufragistas tentavam fazer essa mudança na lei -e os parlamentares sempre derrotavam ou engavetavam as propostas. Mas elas continuaram tentando.

Eu amo essa foto da Bertha subindo no aviãozinho. Pra mim, ela representa o empenho das sufragistas. Depois de anos sendo ridicularizadas pela opinião pública, que não via as eleições como "lugar de mulher", elas seguiam trabalhando. Faziam campanha até do céu: durante o voo pro Rio Grande do Norte, a Bertha aproveitou pra jogar panfletos em defesa da causa por todo o Brasil.

Mas não é olhando pra esse esforço que a história do sufrágio feminino costuma ser contada. Essa aqui é a historiadora Mônica Karawejczyk, que você já conhece do episódio passado.

[Mônica] Eu comecei a pesquisar sobre e eu vi que o assunto não se esgota. Quando comecei a pesquisar, se falava: "está, para que tu quer saber isso se as mulheres nunca pediram nada e o Vargas deu esse voto para as mulheres?"

Hoje, a gente vai mostrar que isso não é verdade -teve muita luta das mulheres para o voto acontecer.

Eu sou Angela Boldrini, e este é o Sufrágio, um podcast da Folha que tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting. Episódio dois: Votamos.

No dia 24 de fevereiro de 1932, o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas, assinou um decreto que, entre outras coisas, instituiu o voto como direito das mulheres.

Mas não é que o Vargas acordou bem humorado nesse dia e decidiu que seria de bom tom deixar metade da população votar. Essa mudança foi parte do primeiro Código Eleitoral do Brasil, que fez um monte de outras alterações na forma como eram feitas as eleições.

Apesar de ter sido publicado num contexto autoritário, o Código é resultado de muita discussão -e de pressão das sufragistas. De novo, a historiadora Mônica.

[Mônica] A gente percebe que é um processo de lutas que vem há muitos anos né, desde antes do período... Desde o período imperial, já tinha mulheres se colocando nesse espaço, reivindicando o direito de votar e ser votada.

A Mônica defende que, apesar dessas iniciativas do século 19, o movimento sufragista brasileiro ganhou força mesmo a partir do começo do século 20, quando as mulheres começaram a se organizar em associações -como a da Bertha.

A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino nasceu em 1922. Durante quase uma década se concentrou em tentar fazer o Congresso Nacional aprovar uma emenda à Constituição que desse às mulheres o status de cidadãs. Só assim, elas iam poder votar.

Para isso, elas iam de parlamentar em parlamentar, tentando arrumar alguém que pudesse encampar a causa. E elas conseguiam chegar até esses homens por uma questão de classe. A historiadora Branca Moreira Alves conversou com a Bertha sobre isso nos anos 1970.

[Branca] Até ela conta toda essa coisa do lobby tem a ver com a ligação delas em termos de classe social, né? Elas tinham acesso a alguns deputados porque uns ela mesma conta, né, uns tinham fazenda aí o voto... E o voto dos colonos era importante, aí uma sufragista era vizinha na fazenda dele, né? Enfim, esse tipo de ligação.

A Branca entrevistou a líder do movimento sufragista pouco antes de a Bertha morrer, aos 82 anos. Deve ter sido uma das últimas oportunidades de ouvir essa história da boca dela. Quando eu marquei de conversar com a Branca, eu estava torcendo muito para ouvir as gravações da conversa delas. Só que não tem como.

[Angela] Quando foi que perdeu?

[Branca] Em 1975, eu me separei e fui morar num apartamento pequeno. Então tudo o que eu tinha de livros e tudo, toda minha biblioteca de estudos, de tudo, tudo, tudo, eu mandei para a fazenda da minha mãe, que tinha um porão. E o porão era embaixo do banheiro. E simplesmente houve uma infiltração. E como a gente não morava lá, até descobrir infiltração, quando minha mãe foi lá, estava nadando. Todas as fotos das crianças pequenas… Tudo dançou. Deus seja bendito. Eu não sei do que eu choro mais: se é das crianças ou se é das entrevistadas.

A gente não têm as fitas, mas tem a memória da Branca sobre a conversa. E, para nossa sorte, ela tem uma memória excelente.

O curioso sobre essa entrevista é que a Branca procurou a Bertha porque queria ouvir ela para dissertação de mestrado. Só que o trabalho até aquele momento não tinha nada a ver com as sufragistas.

[Branca] O meu tema de tese era as primeiras profissionais liberais no Brasil. Ela era uma delas, que ela era bióloga e a segunda funcionária pública a passar por um concurso no Brasil. E ela falava o tempo todo do voto e eu não estava prestando atenção. Mas ela me entregou de bandeja.

Uma frase que a Bertha disse mudou tudo.

[Branca] Foi ali, parece que eu estou vendo ela. Cada vez que eu falo sobre isso eu fico emocionada. Ela baixinha, gordinha, com um vestido de algodão estampadinho, tipo abotoado na frente, sem gola, manga curta, ela tinha o cabelo curto e assim me levando nesse portão. Eu quando descrevo isso, eu vejo a casa dela, uma casa pouco no alto na Usina da Tijuca lá no Rio. E descendo a escada até o portão, um portão enferrujado fazendo "nheeee", [risos]. E aí eu me despedindo dela e ela diz isso.

"Alguém precisa contar essa história, porque nós não tivemos tempo."

[Branca] Aí eu peguei o fusca e fui descendo ali pela Tijuca, dizendo eita. Logo depois liguei para ela e pronto, eu estava com a tese na mão. Foi um privilégio mesmo, um privilégio.

Um pouco antes de dizer essa frase que virou a dissertação da Branca do avesso, a Bertha tinha explicado como elas contornaram um golpe de estado que derrubou boa parte dos políticos que elas tinham passado anos convencendo a apoiar a causa.

A chegada do Vargas ao poder em 1930 criou um furdunço na república bem quando parecia que o nó do voto feminino ia começar a ser desatado. As sufragistas continuavam fazendo aquela pressão, e Brasil afora, grupos de mulheres vinham conseguindo na Justiça o direito de votar -usando como argumento a legislação do Rio do Grande do Norte. Era questão de tempo até que os parlamentares fossem obrigados a olhar para isso.

Um dos motes da Revolução de 30 era a mudança na forma como eram feitas as eleições -e as sufragistas decidiram aproveitar a chance. O voto feminino nacional saiu porque depois de insistir muito, a Bertha e as mulheres da Federação finalmente conseguiram bater na porta do gabinete mais importante da República -o do presidente.

É muito doido pensar que foi tão difícil e demorou tanto tempo para metade da população ter acesso a uma coisa que é quase banal hoje em dia.

Eu queria muito falar com alguém que tivesse vivido na pele essa experiência de querer votar e não poder. E eu encontrei essa mulher -em um dos bairros mais movimentados de São Paulo.

[Shukria] falando dari

Essa é a Shukriã. Ela mora com três dos filhos e uma nora num apartamento no segundo andar de um predinho no Brás, no centro da capital paulista. Ela é afegã, e veio refugiada para o Brasil em dezembro do ano passado, depois que um grupo fundamentalista assumiu o governo do país dela. De novo.

TV Globo Vinte anos depois de ser expulso por tropas lideradas pelos EUA, o Talibã retomou hoje o controle de Cabul, em uma ofensiva relâmpago, e já controla praticamente todo o território

Talvez você não esteja entendendo por que surgiu uma pessoa que fala uma língua totalmente diferente no meio de um podcast sobre o voto feminino no Brasil.

É que achar uma brasileira que tenha vivido a experiência de não poder votar por causa do gênero ia ser bem difícil. O voto foi aprovado aqui para mulheres com mais de 21 anos em 1932. Ou seja, eu precisaria falar com alguém que tivesse mais de cem anos hoje em dia.

Por isso, eu decidi procurar essa mulher em outro país. Quem me ajudou nessa busca foi uma amiga, a Flávia Mantovani, que é repórter da Folha e escreve sobre as comunidades refugiadas no Brasil.

A gente ficou pensando, e aí eu fui pesquisar a história do voto feminino no Afeganistão, e descobri que ela é cheia de idas e vindas. Uma hora pode, outra hora não pode, agora pode de novo, depois ninguém sabe mais se pode…

A Flávia falou que, normalmente, é bem difícil falar com as afegãs. Mas ela tinha um contato.

[Zabiullah] Oi, oi, oi.

[Flávia] Qual é a idade da sua mãe agora, Zabi?

[Shukria] falando dari

[Zabiullah] 55.

O Zabiullah é filho da Shukriã. Ele mora em São Paulo desde 2014 e disse para Flávia que a mãe dele tinha acabado de chegar no Brasil –e topava contar a história dela.

[Flávia] De qual cidade ela é? Onde ela nasceu?

[Zabiullah] Do Cabul.

A Shukriã só fala dari, que é uma das línguas oficiais do Afeganistão -mas nenhuma de nós duas (e muito provavelmente nem você) falamos essa língua. Então o Zabi, que é como a Flávia chama ele, foi o nosso intérprete.

A gente chegou no portão do prédio deles num sábado, no horário marcado, às duas da tarde.

O Zabi e a Shukriã nos receberam na sala do apartamento. Era um cômodo pequeno, e o chão ficava quase totalmente coberto por um tapete quadrado vermelho e branco. Numa parede, uma cama coberta por uma manta que também vermelha fazia as vezes de sofá.

A Shukriã e o Zabi sentaram nela, um do lado do outro. E eu e a Flávia puxamos duas das três cadeiras de madeira escura que estavam encostadas na parede oposta. A Shukriã usava um véu estampado e fininho, escondendo quase todo o cabelo castanho dela.

Antes de começar a entrevista, ela ficou batendo papo com a gente. Quer dizer, ela estava falando e gesticulando como se a gente estivesse tendo uma super conversa. Eu não entendi uma palavra, mas percebi que ela era uma pessoa fofa.

Eu comecei perguntando quando ela tinha votado pela primeira vez.

[Shukria] falando dari

[Zabiullah] Ela começou a voto… no sistema de votação para as mulheres em 2001 [Shukria fala em dari]

2001 foi o ano que o primeiro regime do Taleban caiu. Ele foi substituído por um governo aliado dos americanos e três anos depois o país teve eleições. Quando a Shukriã votou pela primeira vez, ela tinha 37 anos.

Imagina isso? Eu tenho 27 anos e estou indo para minha terceira eleição presidencial.

[Zabiullah] Nessa época que tipo estava muito as mulheres como uma coisa nova para eles, eles também não estavam muito acostumados com isso. Minha mãe ela trabalhava como professora e também como sistema de votação para as mulheres.

Quando o Zabi fala que a mãe dele trabalhava no sistema de votação para mulheres, isso significa que ela foi tipo uma mesária, ajudando as outras a entenderem o processo. Como a maioria nunca tinha votado na vida, elas não tinham a menor ideia do que fazer na urna.

[Angela] Eu queria perguntar sobre a sua mãe. Ela gostava de votar? Era um desejo que ela tinha antes de 2001?

[Zabiullah] Antes dessa na verdade, eles não tinha como, como eles ter uma esperança que um dia eles consegue votar e eles nem imaginava isso. Mas quando aconteceu isso, tipo todo mundo eles mulheres ficou muito feliz com isso, que eles também têm uma direito que ele pode escolher os presidentes, pode votar. Essa foi muito prazer para eles para conseguir fazer isso.

Será que as brasileiras também se sentiram assim em 1932? A Bertha e as outras feministas devem ter ficado, né. Mas tipo, será que a minha bisavó ficou feliz?

Da sala onde a gente estava, dava para ouvir uma movimentação na cozinha -e alguns minutos depois, a nora da Shukriã veio com uma bandeja enorme de biscoitos e quatro canecas fumegando, que ela entregou para gente.

[Nora] falando em dari

[Flávia] Olá, tudo bem? Ó meu deus, obrigada.

Em cada uma tinha um chá bem doce, perfumado e feito com leite. Era tão bom que a gente ficou curiosa.

[Flávia] Você viu que delícia isso?

[Angela] Eu ia até perguntar: o que que é esse chá que mistura com leite?

[Zabiullah] Essa... no nosso país tem chá preta, mas uma chá preta outra que ele só faz misturar com leite. E fica mais delicioso.

[Flávia] É chá preto comum?

[Zabiullah] [00:08:56] Ele fica mais delicioso.

[Angela] [00:08:56] Ele é muito cheiroso.

[Zabiullah] Aqui não acha infelizmente.

[Flávia] Esses vocês trouxeram de lá?

[Zabiullah] Nós… um amigo ele estava vindo para o Brasil e a gente pediu.

[Flávia] Ah, ele trouxe para vocês.

O Zabi era novo, ele tem 30 e poucos anos. Deve ter sido difícil para ele mudar de país, como acho que é para todo mundo. Mas não consigo nem imaginar como deve ter sido para mãe dele, que viveu mais de 50 anos na mesma cultura. Até o chá que ela estava acostumada a tomar agora está a milhares de quilômetros de distância.

Quando o Taleban voltou ao poder, eles tinham prometido ser uma versão "paz e amor". E tinham dito que os direitos das mulheres iam ser mantidos. Mas as escolas para meninas continuam fechadas e várias restrições foram impostas para o trabalho e para circulação delas no espaço público.

[Zabiullah] Infelizmente, agora o sistema mudou tudo e todas as esperanças acabou. Todas as mulheres que estavam lá estudando e ter estudado a faculdade sabe tudo, mas infelizmente dentro de casa não pode fazer nada. E nem pode sair de casa sem permite do Taleban, tipo uma coisa assim.=

Ninguém sabe direito o que o Taleban vai fazer dessa vez em relação às eleições e aos direitos políticos das mulheres. Seja como for, a Shukria preferiu deixar tudo para trás e não pagar para ver.

Quando a gente estava se despedindo, eu e a Flávia agradecemos de novo pelo chá delicioso.

[Shukria] falando em dari

[Zabiullah] Ela vai te dar um pouco.

[Angela] Não, gente, se é uma coisa que vocês só conseguem no Afeganistão pelo amor de Deus.

[Shukria] falando em dari

[Zabiullah] Mas é muito, para nós trouxe muito.

Não teve jeito. A hospitalidade afegã fez com que a gente só pudesse sair do apartamento devidamente munidas de uma sacolinha de chá cada uma. Eu e a Flávia fomos embora quando já começava a escurecer e as ruas Brás estavam vazias.

O encontro com a Shukriã me deixou pensando em como as mulheres engajadas na luta pelo sufrágio no Brasil deviam se sentir. Ano após ano, projeto após projeto, e os homens sempre dizendo que "ah, agora não é a hora", sempre deixando sempre para lá.

Até aquele dia em que elas conseguiram bater na porta do gabinete mais importante da República: o do presidente.

De novo a Branca Moreira Alves, citando as lembranças da Bertha.

[Branca] Então ela conta que a Carmen Portinho, uma companheira delas, era prima do secretário do Getúlio. Então conseguiram uma audiência com Getúlio, um grupo delas, e conversaram com ele. Ela me conta na entrevista que ele diz: Ah, então eu vou dar o voto qualificado, o voto para mulheres de nível universitário.

O governo tinha montado uma comissão para mexer na legislação eleitoral. O principal objetivo era instituir o voto secreto e acabar com as fraudes que aconteciam muito na Primeira República.

Eles também tinham começado a pensar em incluir o voto feminino… só que com várias restrições. A ideia era que só algumas mulheres viúvas e solteiras, aquelas que tivessem renda própria, pudessem votar. As casadas tinham que ter autorização do marido.

A Bertha contou para Branca que na reunião com o Vargas, o presidente tinha tentado quebrar o gelo dizendo que ele era a favor das mulheres porque elas "tinham feito metade da revolução". A essa altura do campeonato, as sufragistas já estavam sem paciência nenhuma com gracinha e a Carmen respondeu: é por isso que o senhor só quer dar metade do voto?

Aí o Vargas ficou meio desconcertado e perguntou: como assim metade do voto? E ouviu: pois é, quer dar o voto qualificado para algumas classes e outras não. Assim nós não queremos. É tudo ou nada.

[Branca] Ela conta que o Getulio diz: Então eu vou falar com o fulano, o coordenador lá da comissão, que dê o voto. Então foi assim que elas conseguiram no regime provisório ainda do Getúlio, em 32.

E foi assim, depois de uma bronca que as sufragistas deram no Vargas, que saiu o voto feminino -e saiu exatamente nas mesmas condições que o voto masculino.

Claro que a coisa toda de revolução, governo provisório e a possibilidade de fazer as coisas por decreto presidencial adiantaram o processo. Antes, as sufragistas precisavam conseguir a maioria do Congresso. A partir de 1930, elas só precisavam convencer um homem: o Vargas.

O direito de as mulheres irem às urnas foi primeiro publicado no Código Eleitoral e, dois anos depois, consolidado na Constituição de 1934. A conquista que envolveu décadas de lobby e insistência feminina foi resumida em uma expressão curtinha, com só quatro palavras.

É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na fórma deste Código.

Apesar de tudo, até que dá para dizer que a gente foi um pouco pioneira nessa história. O Brasil foi o quarto país das Américas a dar direitos políticos para as mulheres. Aqui, a historiadora Mônica Karawejczyk.

[Mônica] O primeiro aqui foi o Canadá em 1917, depois foi os Estados Unidos em 1920, depois o Equador em 29, e depois o Brasil e o Uruguai em 32. Então quer dizer que a gente está bem, né?

E o próximo passo era claro: votar. A primeira eleição em que brasileiras puderam participar foi em 1933, para eleger os deputados que iam escrever a nova Constituição.

A Mônica disse que os dados que a gente tem do período mostram que as mulheres foram entre 20 e 30% do total de eleitores. Considerando que as brasileiras podiam votar, mas que isso era facultativo na época, a taxa de comparecimento é super expressiva.

E a novidade chamou a atenção da imprensa. As reportagens chamavam as seções femininas de "seções das Marias", ou falavam que o ambiente estava mais "perfumoso" e organizado. E elas também registravam quem não ficou feliz com a mudança.

Essa aqui é uma reportagem que saiu no Diário de Notícias de Porto Alegre dois dias depois da eleição. Quem vai ler é o Maurício Meireles.

[Maurício] Numa das seções eleitorais encontramos à porta, a brincar com o ursinho de lã, um garoto aparentando uns quatro anos. Perguntamos o que ele estava ali fazendo. "Estou esperando a mamãe que foi votar". Então um velho conservador que ouviu a resposta virou-se para nós e sentenciou: É, desse jeito, o governo que terá que pôr uma vaca à porta das mesas eleitorais para dar leite aos bebês enquanto a mãe vota.

Colocar vacas nas seções acho que seria um pouco de exagero, mas sabe o que teria sido bom de verdade? Colocar creche. Pensa comigo: se hoje em dia as mulheres ainda são as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos, imagina nos anos 1930?

Não foi o governo, mas alguém pensou que dar apoio para as mães ia ser fundamental para incentivar a participação das brasileiras na eleição.

[Mônica] A Federação Brasileira para o Progresso Feminino colocou à disposição das mulheres uma sala na sede delas com uma creche, dizendo: "olha, levem os seus filhos aqui para gente cuidar",né? Para incentivar essas mulheres a irem votar e não dizer "eu tenho que ficar".

Essa ação fazia sentido com o argumento da Bertha para convencer um mundo masculino de que o voto tinha que ser estendido para as mulheres. Durante a campanha, para se diferenciar do tal "mau feminismo", elas diziam que os homens não iam ter que começar a fazer aquelas funções, entre muitas aspas, femininas.

Dá para ver pelas charges dessa época que esse era o grande medo deles. Boa parte dos desenhos mostrava mulheres saindo de casa, fumando, trabalhando, e homens de avental cuidando das crianças ou passando camisas. Nada assustava mais os homens do que a ideia de serem tratados como as mulheres.

A Bertha e as companheiras dela tinham conseguido uma grande vitória. Mas a gente precisa lembrar de uma coisa. Ainda existia uma restrição importante na lei eleitoral.

[TV Justiça] Em 1985, por uma emenda constitucional, quem não sabia ler e escrever ganhou o direito de votar. Venceu a tese de que os meios de comunicação e a propaganda eleitoral permitem que todas as pessoas possam se informar sobre os temas da atualidade

Os analfabetos não tiveram direito de votar por mais meio século. E isso excluiu das eleições uma parcela imensa da população -e maior ainda das mulheres. Principalmente, das mulheres negras. Os números de alfabetização do censo de 1940 são assustadores. Naquele ano, só metade dos homens brancos com mais de 5 anos sabia ler e escrever.

Entre as mulheres brancas, só 40% eram alfabetizadas. Nesse grupo a gente pode incluir as sufragistas, que eram da elite da época. Entre as mulheres negras, 14% sabiam ler. O número de brasileiras negras alfabetizadas só foi passar de 50% em 1980.

A Constituição de 1988 acabou de vez com essa exclusão dos analfabetos. Mas eu fiquei me perguntando se em 2022 ainda existem fatores que podem dificultar o acesso de mulheres às urnas. Não estou falando de uma coisa tipo, sei lá, não regularizar o título a tempo. Eu estava procurando questões ligadas ao fato de serem eleitoras e não eleitores.

Eu saí perguntando para as mulheres com quem eu estava conversando para o podcast para ver se era uma viagem minha ou se de fato ainda existiam possíveis gargalos eleitorais de gênero.

Uma das mulheres para quem eu mandei mensagem foi a Andrea Werner. A Andrea é mãe de um menino autista, o Theo. Ela também é ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e candidata do PSB para Assembleia Legislativa de São Paulo.

[Andrea] A gente tem uma estatística que diz que 78% dos pais abandona a família quando o filho é diagnosticado com a doença rara ou deficiência é uma estatística do Instituto Barese de um levantamento de 2012.

Eu queria saber se mães de pessoas com deficiência encontravam alguma dificuldade para ir votar.

[Andrea] Então a gente está falando de muitas mães, de uma grande maioria de mães solo, que já é difícil de ter rede de apoio nesses casos. Eu senti algumas coisas nesse período em que eu me candidatei e tudo.

Ela me contou que em 2020, quando foi candidata a vereadora pelo PSOL, recebeu várias mensagens de eleitoras.

[Andrea] Então foram muitas, muitas mães mesmo que me mandaram mensagem, falou: Olha, eu adoraria votar em você, mas eu não posso tirar minha filha de casa. Nem eu estou saindo de casa direito, porque se ela pegar essa doença, ela morre. Se ela pegar Covid ela morre, que ainda não está vacinada. Então, infelizmente, eu não vou poder sair para ir votar em você. Isso aconteceu muito em 2020. Eu recebi relatos também de mães que levaram os filhos autistas junto porque não tinham com quem deixar e o mesário não deixou votar com o acompanhante, que era criança ou adolescente autista no caso.

Não existem dados estatísticos de quantas mães atípicas deixam de votar por causa disso. Mesmo assim, eu queria ouvir a história de uma delas -e a Andreia me passou um contato. E aí numa manhã de segunda-feira em junho, eu aproveitei que estava em São Paulo e fui até um prédio de escritórios no Itaim.

[Denise] Meu nome é Denise, Denise Crispim. Eu tenho 43 anos, sou coordenadora de planejamento e Inteligência de dados e eu tenho uma filha de 16, que faz 17 daqui a dois dias, que tem paralisia cerebral do tipo quadriplégica então ela é uma adolescente que precisa de muita assistência.

Em 2020, a Denise deixou de votar porque ela não podia levar a Sofia para seção eleitoral. Ela não podia arriscar que a menina pegasse Covid, porque ela faz parte de um grupo de risco e ainda não tinha vacina disponível.

[Denise] Às vezes eu deixo ela sozinha alguns instantes. Se for uma coisa rápida assim, eu deixo ela sozinha. Só que a grande questão é essa assim, uma eleição, a gente nunca sabe quanto tempo leva. E quando eu estou com ela, eu uso fila preferencial. Mas se eu tiver sem ela, eu não tenho fila preferencial. Não há nenhum tipo de cuidado coletivo assim "ah mães podem votar num horário separado", que também era uma opção, sabe? Do mesmo jeito que os bancos pensaram em colocar um horário para aposentados que precisassem, e tal ninguém pensou em fazer um horário para mães votarem.

Mesmo quando a Denise levava a Sofia, às vezes encontrava barreiras de acesso.

[Denise] Na seção que eu voto, por exemplo, tem algumas vagas perto até e tem uma calçada. E eles deixam um lugar para o fiscal do sei lá quem para a autoridade não sei o que. E aí, uma vez que eu fui com a Sofia e aí eu fui tentando chegar assim ó, eu preciso parar o mais perto possível. E aí eles assim: não, não, essa vaga é reservada para sei lá quem. Era a única vaga acessível que tinha. Foi uma confusão para falar assim: não, eu vou votar. Na época, ela era pequena, e eu estava com ela então eu conseguia usar a fila preferencial. Levou o que, 20 minutos? Mas a confusão de conseguir parar numa vaga que teoricamente tinha que ser minha por direito ou de qualquer outra pessoa com deficiência ali usando, levou mais de uma hora. Sério.

É, ter um direito assegurado na lei é super importante. Mas o trabalho não acaba aí.

Casos de mães como a Denise mostram que se você não der estrutura para a mulher chegar até a urna, você também está excluindo ela da democracia. Lembra da creche que a Bertha e as sufragistas montaram?

[Denise] Se houvesse alguma informação, algum tipo de cadastro, que a gente informasse que tem um filho com deficiência, enfim, isso poderia facilitar de algumas maneiras. Você poderia usar uma fila preferencial, estando ou não com a criança, porque a mãe, mesmo que ela não leve a criança, uma mãe de filho com deficiência não pode ficar duas horas fora de casa, sabe? É complexo.

Neste ano o plano da Denise é ir votar. Ela não vai com a Sofia, que vai ficar com a tia enquanto a mãe vota. Mas esse é um arranjo familiar, que está sujeito a imprevistos. Não tem uma política pública que assegure para Denise que vai dar para ela votar em 2022.

Eu me despedi dela depois de uns 20 minutos de conversa. Naquela noite, eu ia aproveitar a viagem para ir num concerto da Osesp com uma amiga. Antes, a gente se encontrou para jantar e aí gente estava conversando sobre o podcast quando ela me disse: "e as mulheres trans que não corrigiram o nome?"

Na hora, eu fiquei tipo "como que eu não tinha pensado nisso antes?". Por sorte, no dia seguinte eu ia conversar com uma mulher que ia saber se essa hipótese faz sentido.

[Erika] Sim, sim, com certeza. Quando a gente não retifica o nome e não tem uma política consolidada de utilização do uso nome social e a gente vai para um espaço de exposição e alta circulação de pessoas, que aí você está na mesa do mesário etc. e não sabe quem nós vamos encontrar. Isso pode ser sim, um grande impeditivo. Acho que um outro impeditivo também é a ausência, muitas vezes, de documentação.

A gente vai encontrar de novo com a vereadora do PSOL Erika Hilton. Mas eu não podia perder a oportunidade de perguntar para ela, que é uma mulher trans, se existe mesmo um problema de acesso ao voto para essas mulheres.

[Erika] A questão do documento civil seja pelo fato da ausência dele ou… e a gente sabe que o Brasil é um país que tem um número grande de pessoas vivendo sem registro civil. Mas sem sombra de dúvida, essa questão que envolve o desrespeito ao nome, o desrespeito à identidade, pode, sim, ser algo que constranja e que faça com que as pessoas não vão até as urnas votarem.

Eu não tenho uma resposta sobre quantas mulheres podem enfrentar problemas de acesso ao voto em 2022. E as duas situações que a gente contou não devem ser os únicos gargalos de gênero hoje.

Mesmo assim, eu terminei a apuração desse episódio pensando que a gente não pode parar de prestar atenção na vida real para além das letras da lei. Pelo menos se a gente quiser ter uma democracia que inclua o maior número de pessoas -que devia ser o objetivo da democracia, né?

Quando gente fala de acesso das mulheres à política, a gente não está falando só das eleitoras. Por isso que apesar da vitória da Bertha, este podcast não acaba aqui. É que o mesmo código eleitoral que deu às mulheres o direito de votar, deu também às mulheres o direito de serem votadas.

A briga para votar foi grande, mas a para se eleger não fica atrás. A historiadora Monica, uma última vez.

[Mônica] Estou fazendo agora pesquisa sobre essa primeira eleição que elas participaram, né? O que eu estou percebendo é que nesse batismo eleitoral das brasileiras, elas foram exaltadas, sim, pela sociedade, pelos periódicos, principalmente como eleitoras, mas não como candidatas.

Essa dificuldade de ver mulheres como candidatas para posições de poder se reflete no presente.

[Mônica] Eu acho que acho que é muito importante a gente conhecer a nossa história e dizer que é importante a gente, nós mulheres, estarmos nesse espaço público. A gente tem voz e a gente tem que ter vez na política. A gente vê vários retrocessos que estão acontecendo não só no Brasil como no mundo todo nessas conquistas femininas que a gente teve. Eu acho que a gente tem que essa questão dos direitos e emancipação feminina ela segue sendo super importante. Tem que ser cada vez mais debatida em todo o país. E a gente vê que a gente não está lá as nossas pautas não são, não são vistas, não são representadas, não são ditas como importantes.

É para o outro lado da urna que a gente vai na próxima quinta-feira.

O Sufrágio é um podcast da Folha que tem apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting. Eu sou Angela Boldrini, e a idealização, pesquisa, reportagem e roteiro são meus. A Flávia Mantovani contribuiu com a reportagem neste episódio. A produção é da Jéssica Maes e a edição de som é da Laila Mouallem. A coordenação é da Magê Flores, que também editou o roteiro deste episódio junto com o Maurício Meireles. A identidade visual é da Catarina Pignato, e a divulgação é feita pelo Naná DeLuca e pelo Mateus Camillo. A gravação foi feita no Estúdio Madruga, em Brasília.

Este episódio usou áudios da TV Globo e da TV Justiça.

Para a apuração, nós ouvimos muita gente. Então eu gostaria de agradecer à professora Teresa Cristina Novaes Marques, da Universidade de Brasília, pela consultoria histórica, e também à Isabela Del Monde e à Marcella Rezende.

Segue o podcast na sua plataforma favorita para não perder nenhum episódio. E até semana que vem!

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