Minha filha não se conformava de não ir à escola, diz afegã refugiada no Brasil

Mulheres que deixaram o Afeganistão devido à volta dos extremistas um ano atrás contam sua história à Folha

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A refugiada afegã Khatera Mohmand, 38, em Jundiaí (SP), onde mora com a família Bruno Santos/Folhapress

Jundiaí

Ativista pelos direitos femininos em um dos países com maior desigualdade de gênero no mundo, a afegã Khatera Mohmand, 38, enfrentou muitas batalhas para combater a violência contra a mulher no serviço público que chefiava.

Mas poucos momentos foram tão difíceis quanto ter que explicar à própria filha, Lema, 8, que ela não poderia mais ir à escola. "Ela me perguntou: ‘o quê? Por quê? Eu adoro a escola, eu quero ir’", conta. "Como eu iria explicar isso para ela? Como dizer que ela não pode estudar, mas os meninos, sim?".

Chefe do departamento de equidade de gênero de uma organização do governo, Khatera deixou seu escritório às pressas no dia 15 de agosto do ano passado, quando o Talibã entrou em Cabul e, em um ofensiva relâmpago, assumiu o poder central.

Ela tinha lembranças nítidas do outro período em que o grupo fundamentalista controlou seu país, de 1996 a 2001. Filha de um casal de professores, Khatera passou quase seis anos estudando em casa, com a irmã, às escondidas, "como se fosse um crime".

Desta vez, temendo que o mesmo acontecesse com Lema e vendo a própria vida ameaçada devido à causa que defendia, ela decidiu migrar para o Brasil com o marido, com Lema e com Sohail, o filho mais velho. Auxiliados por uma ONG, eles foram para Jundiaí (SP), onde as crianças já vão à escola pública.

No pequeno apartamento com varanda, lampejos da vida anterior podem ser vislumbrados em uma cristaleira, com objetos que antes decoravam o imóvel de cinco quartos onde moravam em Cabul: medalhas escolares de Sohail, um livro escrito pela mãe de Khatera, suvenires, artesanato de mulheres afegãs. "Você não consegue colocar toda a sua casa em uma mala, mas eu quis trazer os objetos de maior valor sentimental", conta ela.

Khatera é a última entrevistada de uma série de três mulheres que contaram suas histórias à Folha um ano depois que o Talibã voltou a governar o país. São afegãs que viveram a maior parte da vida com acesso a alguns direitos básicos —ir à escola, caminhar pelas ruas e trabalhar— e que viram tudo isso desaparecer de um dia para o outro.

A sociedade afegã é tradicional e sempre deu mais direitos aos homens do que às mulheres. Isso começa dentro das famílias, porque a maioria dos homens acredita que o trabalho das mulheres deveria ser ficar em casa, cuidar das crianças, cozinhar.

Eu sou de uma família diferente. Minha mãe era professora e escritora, meu pai também foi professor, e eles nunca trataram de forma diferente os filhos meninos e meninas. Eles nos diziam: "Nunca tolere que cometam violência contra você ou contra qualquer pessoa à sua volta". Acho que aí começou meu ativismo.

Meus pais também deixaram os filhos escolherem com quem queriam se casar. Meu casamento foi por amor, não arranjado pelos pais.

Desde que me graduei em ciências da computação, eu ficava chateada de ver a desigualdade no mercado de trabalho. Então passei em um concurso público e novamente vi isso acontecer. Nessa época, o governo criou departamentos de gênero em cada organização e eu me tornei a chefe desse departamento. E aí começou minha luta para convencer os homens a agir diferente e as mulheres de que elas tinham direitos. Muitas não denunciavam casos de assédio ou violência, por medo de sofrer retaliação.

Quando o Talibã entrou em Cabul, parecia um dia comum e eu fui trabalhar normalmente, mas o ambiente estava tenso. Então uma amiga me ligou e me disse: "Khatera, vai para casa. Acabou". Só consegui pegar meu laptop. Olhei para o escritório e percebi que algo acabava ali, especialmente para mim. Foi um momento triste.

Meu marido já estava em casa com as crianças. E assim ficamos por uns quatro ou cinco meses. Eu não podia sair, outras ativistas foram agredidas, desapareceram. Para piorar, não tínhamos mais emprego, salário. Como poderíamos viver sem nenhuma renda? Então decidimos migrar.

Quando você está em perigo, começa a procurar como sair do país. Minha família e eu entramos em contato com amigos e amigos de amigos ao redor do mundo, até que soubemos que o Brasil era um país seguro e estava dando vistos para afegãos. Então viemos.

Quando saí do avião, percebi que todas as pessoas que estavam carimbando os passaportes na alfândega eram mulheres, uma delas parecia ser a diretora de todos ali. Enquanto esperávamos, vi aquelas mulheres trabalhando, interagindo. Nesse momento eu já senti: sim, o Brasil é um lugar que valoriza as mulheres.

Depois percebi que muitas mulheres, como homens, são responsáveis por suas famílias. Elas trabalham, dirigem. Até dirigir é um problema no meu país. Tudo isso me faz perceber que o Brasil tem igualdade de gênero. Fico feliz por isso.

Mas tornar-se um refugiado é um enorme desafio. Imagine ter que deixar sua casa, o lugar onde você cresceu e tem um monte de memórias, parentes, amigos, tudo. E chegando você não sabe o idioma, não consegue se comunicar nem para dizer que tem um problema, para pedir ajuda.

Nunca vou me esquecer do dia em que a professora da minha filha me disse algo em português, gesticulando com o número dois. Eu só acenei, mas não entendi. Quando já estava em casa, minha filha ligou chorando, dizendo que estava sozinha com a professora porque ninguém tinha ido buscá-la. O que a professora tinha me dito era para buscar as crianças mais cedo naquele dia, às 14h, não às 17h, mas eu não entendi. Fiquei muito chateada.

Mas devagar estamos aprendendo português, fazendo amigos, tentando achar um trabalho. Os brasileiros em geral não falam inglês, mas são pessoas boas e estão nos tratando muito bem, se esforçam para ajudar. Não sabemos como será o futuro, precisamos conseguir um emprego, aprender o idioma. Eu gosto do sotaque de vocês. Tomara que um dia eu consiga dar essa entrevista em português.

A crise humanitária no Afeganistão

Dados da ONU e do Afghanistan Protection Cluster

  • 24 milhões

    de afegãos precisam de ajuda humanitária urgente

  • 700 mil

    afegãos tiveram que se deslocar internamente devido a conflitos em 2021

  • 98 países

    abrigam refugiados afegãos atualmente

  • 65%

    foi o aumento no número de solicitações de asilo por afegãos em 2021

  • 55%

    da população afegã não tem comida suficiente

  • 90%

    das mulheres afegãs foram vítimas de algum tipo de violência de gênero

  • 8,3%

    das afegãs com idade entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 18

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