Podcast investiga maior processo por aborto do Brasil e como tema virou debate político

Caso das 10 Mil conta história de operação policial em clínica clandestina que atingiu milhares de mulheres em Campo Grande (MS)

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Brasília

A Folha estreia nesta quarta-feira (30) um novo podcast, Caso das 10 Mil, série narrativa que investiga a derrocada de uma clínica especializada em abortos e como ela acirrou a disputa política sobre o tema no país.

A Clínica de Planejamento Familiar funcionou durante 20 anos no centro de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. O lugar, comandado pela médica anestesista Neide Mota Machado, oferecia principalmente um serviço: abortos clandestinos.

De 1989 a 2007, passaram pela porta da clínica milhares de mulheres em busca de uma interrupção da gravidez. O procedimento é comum no Brasil: a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021 mostrou que uma em cada sete mulheres com até 40 anos abortou ao menos uma gestação. O levantamento coordenado pela antropóloga Débora Diniz ouviu 2.000 mulheres em 125 municípios.

Essas mulheres, em sua maioria, acessam a interrupção da gravidez no mercado clandestino. No Brasil, o aborto só é legal em casos de estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto.

Uma espécie de acordo silencioso entre a médica Neide Mota Machado e a sociedade de Campo Grande permitiu que o funcionamento da clínica se mantivesse por duas décadas. Até que uma reportagem da TV Globo denunciou os atendimentos e isso desencadeou uma operação policial.

Na ação da polícia, os registros médicos de 10 mil pacientes foram apreendidos. Os casos foram analisados, investigados e levaram mais de mil mulheres à Justiça. As funcionárias da clínica também foram processadas —e levadas ao Tribunal do Júri.

As repórteres Angela Boldrini e Carolina Moraes investigaram por meses esse que se tornou o maior processo criminal sobre aborto do Brasil. O podcast explora os corredores do Congresso em Brasília e viaja a Campo Grande, Belo Horizonte e Uberlândia para resgatar a história da clínica e debater os caminhos da discussão sobre direitos reprodutivos no Brasil.

Angela Boldrini e Carolina Moraes são repórteres da editoria de Podcasts da Folha. Angela apresentou a série narrativa Sufrágio, com apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting, e cobre desigualdade de gênero e temas relacionados aos direitos das mulheres. Carolina é produtora do Café da Manhã e apresentou o Expresso Ilustrada, podcast de cultura da Folha.

A edição de som do podcast é do Raphael Concli. A pesquisa foi feita com Isabella Menon, repórter da Folha, e a coordenação é de Magê Flores. A supervisão de roteiro é do Daniel Castro e a identidade visual do podcast é da Catarina Pignato.

Os episódios são publicados todas as quartas-feiras, às 8h. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

CASO DAS 10 MIL
quando quartas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

Podcast Caso das 10 mil
Podcast Caso das 10 mil - Catarina Pignato

Leia a transcrição do primeiro episódio

A Clínica

Angela Boldrini: Tem uma casa no centro de Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul, que chama a atenção. Ela está pichada, sem fiação, com janelas estilhaçadas, paredes quebradas… Os resquícios do que funcionava ali fisgam os olhos.

As casas vizinhas são todas baixas, e aquele imóvel destoa por ter dois andares. Os dois andares destoam das casas vizinhas, que são todas baixas. O telhado extrapola o topo da casa e cria uma moldura pra ela.

O que sobrou de piso de mármore deixa o prédio ainda mais imponente. Palmeiras e outras plantas altas dispostas no jardim camuflam o primeiro andar. Os muros largos e inclinados dobram a esquina e fazem a casa parecer um forte.

Entre 1989 e 2007, esse foi o endereço da Clínica de Planejamento Familiar da médica Neide Mota Machado. Milhares de mulheres entraram ali atrás de um procedimento comum no Brasil: o aborto. A Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, principal referência sobre o tema, mostrou que uma em cada 7 mulheres com menos de 40 anos já interrompeu pelo menos uma gravidez.

Carolina Moraes: O aborto é crime no Brasil na maioria dos casos. Em Campo Grande, a clínica da Neide Mota operava na clandestinidade. Mas não em segredo.

O bairro do Amambaí era a principal região de serviços de Campo Grande quando a clínica começou a funcionar. O acesso a ela era fácil –a poucos quarteirões da casa ficava a principal rodoviária da cidade, hoje desativada. Iam até lá em busca de abortos pedagogas, esteticistas, funcionárias públicas, faxineiras, estudantes. Algumas eram católicas praticantes, já tinham filhos. Algumas teriam direito a abortos legais, como em casos de estupro, mas escolhiam uma solução rápida e sigilosa nas mãos da médica Neide.

A polícia de Campo Grande sabia qual era o serviço prestado na clínica. A Neide já tinha sido processada duas vezes por fazer abortos. E nas duas vezes, os casos foram arquivados.

Era um arranjo delicado, mas que se manteve por quase 20 anos. Até que um dia esse acordo silencioso entre a clínica e a sociedade de Campo Grande foi rompido.

[reportagem] A questão do aborto, que o Jornal da Globo aborda hoje em duas reportagens, torna-se ainda mais visível diante da atividade de clínicas que facilitam a interrupção da gravidez

Angela Boldrini: No dia 10 de abril de 2007, uma terça-feira, a Globo exibiu em rede nacional uma reportagem sobre a clínica da Neide. Dois jornalistas foram até lá com uma câmera escondida, simulando estar em busca de um aborto.

A reportagem desencadeou uma operação policial. Três dias depois que o vídeo foi ao ar, a polícia entrou na clínica.

Regina Márcia: Nós chegamos lá pela manhã e a clínica estava com, com... Não tinha mais ninguém na clínica. Tinha alguns documentos que foram mexidos ali, como que... Como de alguém que saiu às pressas.

Angela Boldrini: Essa é a delegada Regina Márcia Brito. A equipe que ela comandava tinha uns 10 policiais. Um vigia estava sozinho no portão da casa quando eles chegaram.

A essa altura, os policiais não esperavam encontrar muitas provas dos abortos clandestinos. A equipe médica tinha tido três dias entre a reportagem e a operação para tirar dali o que quisesse.

A clínica da Neide funcionava como qualquer consultório. Quando as pacientes chegavam, elas primeiro abriam um prontuário. Uma ficha.

Regina Márcia: A primeira estava na porta, logo na entrada, como se fosse um balcão e a ficha estava sobre o balcão, sabe? Algumas fichas assim, umas quatro ou cinco fichas recentes, um papel... Estava bem recente ainda sobre o balcão.

Carolina Moraes: No canto esquerdo de cada um desses papéis estava impresso o logo da clínica. Três bonequinhos bem simples, quase de palitinho, que formavam uma família com dois adultos e uma criança no centro.

Os prontuários tinham informações básicas das pacientes. Nome, sobrenome, idade, tempo da gestação... Mas também tinham descrições minuciosas de quem eram aquelas mulheres e do que elas foram fazer ali.

As fichas apontavam a motivação para interromper a gravidez, as datas de entrada e saída das pacientes, os remédios e procedimentos escolhidos. Imagens de ultrassom e resultados de curetagem foram grampeados em várias delas.

As fichas não tentavam esconder e nem maquiar qual era o procedimento que as mulheres iam fazer na clínica.

Tudo o que a gente precisava ali para formalizar o inquérito policial, para materializar… estava tudo ali.

Angela Boldrini: A polícia não encontrou só as quatro, cinco fichas que a Regina Márcia mencionou. Nas salas da clínica, os armários estavam abarrotados de papéis. Os policiais deixaram a casa com caixas e caixas e caixas de prontuários.

Eram 9.896 fichas que esmiuçavam duas décadas de atendimento da clínica –e que se tornaram o centro do maior processo judicial sobre aborto de que se tem notícia no Brasil.

Angela Boldrini: Eu sou Angela Boldrini

Carolina Moraes: Eu sou Carolina Moraes

Angela Boldrini: E esse é o "Caso das 10 mil": podcast da Folha que conta a história de 10 mil mulheres, de um acordo velado entre uma médica e uma cidade, e de como o aborto virou o centro de uma disputa política no Brasil que dura até hoje.

Episódio um: A Clínica.

Na primeira semana de março de 2007, uma equipe da TV Morena, afiliada da Rede Globo em Mato Grosso do Sul, alugou uma micro-câmera. A ideia era usar o equipamento, que serve pra fazer gravações escondidas, para investigar um caso de corrupção em Campo Grande.

A investigação não rendeu. Mas como o dinheiro com o equipamento já tinha sido gasto, os jornalistas se reuniram para decidir o que fazer com a câmera.

[Isabella] Uma das editoras falou assim: olha, por que vocês não vão naquela clínica de aborto? Todo mundo sabe que tem aquele lugar, ninguém nunca fez matéria, ninguém nunca mostrou aquilo lá. Por que vocês não pegam essa câmera escondida e vão lá?

Esse é um trecho da transcrição de uma entrevista que a jornalista Ana Raquel Coppetti deu sobre o caso em 2011. Foi ela que entrou na clínica com a câmera, fingindo que estava grávida.

A voz que leu esse depoimento é da repórter da Folha Isabella Menon. A Ana Raquel não topou conversar com a gente.

A jornalista da Globo contou à pesquisadora Emilia Juliana Ferreira que alguns colegas ficaram com receio da pauta, mas que ela e outro repórter abraçaram a história.

[Isabella] Marquei a consulta para o dia seguinte de manhã e nós fomos. A gente foi assim, meio no susto. Sem, na verdade, pensar no tamanho da coisa que a gente ia descobrir

Angela Boldrini: Ela e o produtor William Santos entraram na clínica como um casal querendo interromper uma gravidez. Eles abriram um prontuário e pagaram R$ 120 pela consulta com a psicóloga da clínica, que fazia a triagem das pacientes. A gente procurou o Willian através da TV Globo, mas nós não tivemos resposta.

[Isabella] A gente ficou um pouquinho apavorado com tudo que a gente tinha na mão. E aí sim nós paramos e pensamos no tamanho do reflexo que a gente ia criar quando colocasse aquilo no ar.

Angela Boldrini: Um terceiro jornalista entrou na produção do material: o repórter Honório Jacometto. Ele também não topou conversar com a gente. Na época, o Honório disse à polícia que eles receberam uma ligação da sede da emissora um mês depois da visita à clínica. O Jornal da Globo, que vai ao ar no fim da noite em rede nacional, queria colocar no ar a reportagem.

A gente procurou a assessoria de imprensa da Globo para saber mais sobre a produção da reportagem e se eles queriam comentar a repercussão do caso. A emissora não respondeu até a conclusão deste episódio.

Carolina Moraes: Em 2007, a discussão sobre o aborto estava particularmente quente. O jornal decidiu exibir a reportagem naquele dia por causa de dois acontecimentos: Portugal tinha sancionado a lei de descriminalização do aborto e uma mulher tinha morrido em Belém, no Pará, por complicações de um procedimento clandestino.

A reportagem de Campo Grande começava mostrando a clínica à noite e o letreiro luminoso da porta, com o logotipo e o nome da médica.

[reportagem da globo] A clínica funciona no centro de Campo Grande, a placa na fachada anuncia um serviço de planejamento familiar.

Carolina Moraes: A câmera escondida mostra os corredores e a sala da psicóloga. Ela atende os repórteres e dá informações sobre como seria feito o aborto. A funcionária diz que as pessoas são contra o procedimento até terem que fazer um, e continua numa conversa sobre como é o atendimento na clínica.

As imagens do consultório são interrompidas e o repórter Honório Jacometto fala com a dona da clínica sobre os abortos clandestinos que acontecem ali.

Angela Boldrini: Imediatamente, o vídeo começou a repercutir entre as autoridades de Campo Grande. E foi determinante para a polícia.

Regina Márcia: Já havia uma investigação na Polícia Civil em relação a clínica,

Angela Boldrini: Essa é de novo a delegada Regina Márcia.

Regina Márcia: Mas até aquele momento a gente não tinha uma prova tão concreta como aquele áudio e aquele vídeo que nos foi encaminhado.

Angela Boldrini: O fato de a clínica fazer abortos não era novidade para a polícia. Não era a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que chegava uma denúncia sobre o consultório na delegacia.

Regina Márcia: Elas vinham através de telefone. Elas vinham através de cartas, de informações, assim, por carta mesmo, por documento, nesse sentido.

Angela Boldrini: Nenhuma dessas denúncias tinha vindo com provas.

Regina Márcia: Era mais um ouviu falar, sabe? "Tomamos conhecimento que ali é clínica de aborto, a gente tem conhecimento que é clínica de aborto", mas não tinha nada formalizado.

Angela Boldrini: Com a reportagem da Globo, a polícia passou a ter material concreto pra agir contra a clínica. Mais do que isso: com o tamanho da repercussão, a equipe foi pressionada a levar o caso adiante com agilidade. A pressão vinha em parte da sociedade civil, mas principalmente da política.

Em poucos dias, o caso deixou de ser uma história local de Mato Grosso do Sul. A denúncia da Clínica de Planejamento Familiar onde se faziam abortos clandestinos virou peça de um xadrez político nacional.

Carolina Moraes: No ano do estouro da clínica, a disputa política entre os grupos pró e contra a legalização do aborto estava em uma tensão crescente.

Em março, o Senado começou a discutir uma proposta de plebiscito sobre a interrupção voluntária da gravidez. O projeto previa que a população fosse às urnas pra decidir sobre o assunto. E o ministro da Saúde da época, o José Gomes Temporão, era um dos defensores da ideia.

[José Gomes Temporão] Todos os países que adotaram essa política houve, na realidade, houve uma brutal diminuição do número de abortos. Ou seja, essa discussão tem que ser discutida dentro de uma questão mais ampla de educação sexual, informação e planejamento familiar

Carolina Moraes: Só existiam dois casos pro aborto legal em 2007: o de uma gravidez que fosse resultado de estupro ou quando ela impusesse risco de vida pra gestante. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal adicionaria mais uma condicionante, em casos de anencefalia do feto.

Angela Boldrini: A Folha publicou uma entrevista com o Temporão, o ministro da Saúde, no dia 9 de abril de 2007. Ou seja, um dia antes da reportagem sobre a Clínica de Planejamento Familiar aparecer na Globo.

Uma pesquisa Datafolha tinha acabado de mostrar que 65% dos brasileiros eram contra mudanças na lei sobre o aborto. O ministro disse que o resultado não surpreendia, porque "a sociedade brasileira", nas palavras dele, "sempre debateu o tema de maneira superficial" e num contexto "moral, filosófico ou religioso".

O presidente Lula tinha acabado de começar o segundo mandato, e dizia que o governo não ia elaborar nenhum projeto sobre aborto. E afirmou também naquele ano que, pessoalmente, não era a favor da interrupção voluntária da gravidez.

[pronunciamento do Lula] Eu tenho um comportamento como cidadão: eu sou contra o aborto. E não acredito que tenha uma mulher neste país que seja favorável ao aborto como se o aborto fosse uma coisa que as pessoas quisessem fazer porque querem fazer. Agora, como chefe de estado, eu sou a favor de que o aborto seja tratado como questão de saúde pública.

Carolina Moraes: Mesmo se posicionando contra do ponto de vista individual, o Lula tava ecoando o discurso do Temporão. Tratar o aborto como questão de saúde significava se afastar, por exemplo, da discussão sobre o direito do feto à vida. E também significava admitir que mesmo o aborto sendo ilegal, mulheres estavam abortando e às vezes morrendo em procedimentos precários.

O Brasil nunca tinha discutido tão abertamente essa questão —com ministros, parlamentares e o próprio presidente trazendo o assunto pra mesa. Isso era comemorado por movimentos sociais e feministas. Mas rapidamente veio um contra-ataque de políticos conservadores e religiosos.

Casos de clínicas clandestinas como a de Campo Grande viraram uma oportunidade pra eles.

Angela Boldrini: No mesmo dia que a reportagem da Globo denunciou a clínica da Neide Mota, um artigo com o título "Brasil sem aborto" tinha sido publicado na Folha. Ele era assinado por um deputado federal do PT da Bahia chamado Luiz Bassuma.

O Bassuma abria o texto dizendo que "o ano de 2007 começou preocupante para os defensores da vida a partir da concepção". O deputado defendia que no momento que o espermatozóide encontra o óvulo, já existe uma pessoa. Esse é o argumento central do Bassuma: que o feto tinha os mesmo direitos de uma pessoa nascida. O que depois ficou conhecido como o "nascituro". O texto diz assim:

"Aspiramos que nosso país seja referência mundial na ‘dignificação da vida’ em todos os seus aspectos. Um lugar onde todos os seres humanos tenham liberdade, acesso à saúde e educação de qualidade, moradia, trabalho, lazer e cultura. Mas tudo começa quando um espermatozóide fecunda um óvulo, dando início à formação de um novo ser humano, que precisa ter garantido o primeiro e o mais importante de todos os direitos: o direito de nascer"

O Bassuma criou e presidiu a primeira Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto no Congresso. Ele é espírita e isso atravessava o mandato dele. O Bassuma até ficou conhecido por ter dito que encarnou um espírito no plenário em 2004.

[Jornalista] O deputado Luiz Bassuma do PT da Bahia presidia a sessão solene, quando proferiu uma oração. naquele momento, baixou a cabeça, mudou o tom de voz e com os dedos trêmulos da mão esquerda batia na mão direita.

[Bassuma] Possamos voltar, de volta ao mundo dos espíritos, e dizer: valeu a pena.

[Jornalista] Os kardecistas presentes, acreditavam que um espírito falava por meio do deputado.

[Bassuma] Eu melhorei, e melhorando ajudei a melhorar o meu mundo

Em 2007, a questão do aborto era uma prioridade dele. Dois dias depois da reportagem denunciar a clínica pelos abortos clandestinos, o Bassuma desembarcou em Campo Grande pra cobrar a instauração de um processo penal contra a médica Neide Mota Machado. No dia seguinte, a polícia bateu na porta da clínica.

Carolina Moraes: Em junho deste ano, a gente foi para Campo Grande porque várias pessoas que estavam no caso das 10 mil atrás continuam lá. O juiz responsável pelo processo, o Aluízio Pereira dos Santos, é uma delas.

Ele recebeu a gente no tribunal do júri numa manhã, com uma pasta bem gorda de papéis.

Aluízio: Essa pasta ela tem alguns documentos que eu acabo guardando exatamente para situações como essa.

Carolina Moraes: Dava pra sacar pelo tom do juíz que não era a primeira vez que ele tava recebendo gente de fora interessada nesse processo. Ele tirou os papéis da pasta e começou a folhear durante a entrevista. E foi aí que a gente entendeu o nível de detalhe sobre as pacientes que chegou às mãos da polícia.

Aluízio: "19 anos. A camisinha furou." "A família não sabe. Está em dificuldades financeiras." "Eu sou universitária. Para mim não é momento de ter filho." "Eu sou casada. Eu não posso ter filho do meu amante." "Só quem sabe da gestação é uma irmã." "Ter cautela. Jovem imatura e muito apavorada." "Está segura. Vai arcar com tudo sozinha. Não quer falar para o namorado."

Angela Boldrini: O que o Aluízio tava lendo eram trechos diretos dos prontuários das pacientes da médica Neide Mota. Ficou claro também o porquê de a polícia considerar que essas fichas eram provas. E essas provas incriminavam as pacientes.

Horários de alta e até discussões sobre como elas iam fazer os pagamentos, se tinham ou não o dinheiro na hora, se iam retornar quando tivessem, tudo isso tava anotado. Documentado.

Aluízio: Paciente admitida para tratamento, que foi às 18h da cirurgia, consciente e tal e tal…

Angela Boldrini: Outras fichas ainda descreviam a aparência, a religião e a visão moral das pacientes. Também indicavam se a família ou o parceiro sabiam do aborto e até se a pessoa era arrogante.

Carolina Moraes: Das quase 10 mil fichas que a delegada apreendeu na clínica, o juiz recebeu 1.200. Mais de 7 mil prontuários foram arquivados ainda na polícia. Isso porque, de acordo com as regras do processo penal, o aborto prescreve como crime depois de oito anos.

Fichas mais antigas do que isso não podiam mais ser usadas para processar as pacientes. Além disso, algumas fichas não tinham nada a ver com aborto. A Neide também fazia outros procedimentos na clínica: colocar DIU, por exemplo. Documentos que não tinham provas claras de aborto, também foram descartados.

E então sobraram 1.200 mulheres que iam ser investigadas e processadas.

A pena para uma mulher que faz um aborto em casos não previstos em lei pode chegar a três anos de detenção. Mas, a essa altura, muitas delas tinham mais uma preocupação: o vazamento dos prontuários.

Nathalia: Nós tivemos contato com algumas dessas fichas também, que estavam ali. Elas ficaram abertas, disponíveis a quem quisesse lá na delegacia por um tempo pra acessar, sabe?

Angela Boldrini: A Nathalia Ziolkowski é da Articulação de Mulheres Brasileiras em Mato Grosso do Sul. Quando o caso estourou, ela fundou uma organização feminista pra tentar ajudar as mulheres que estavam sob investigação.

Muitas delas foram à clínica sem contar pra família, marido, namorado. E agora tudo isso corria o risco de vir a público.

Nathalia: As fichas foram vasculhadas sem autorização das pacientes. O descuido que teve… porque eles pegaram, eles entraram na clínica, pegaram tudo que tinha possíveis provas, computadores, fichas médicas e tal e levaram para delegacia. Algumas pessoas acessaram, inclusive pessoas que começaram a pesquisar, a querer pesquisar sobre o assunto. Ficou um tempo as fichas lá disponíveis para acesso, as fichas médicas.

Angela Boldrini: O juiz e a delegada contestam essa versão. A Regina Márcia disse que era uma preocupação da equipe evitar a exposição das mulheres.

Regina Márcia: Quando o inquérito policial saiu da delegacia, ele saiu em segredo de justiça, no fórum é que ele deixou de se tornar segredo de justiça. Então, na delegacia, esses documentos ficaram muito bem protegidos. Não teve isso.

Angela Boldrini: O Aluízio nega que isso tenha acontecido no fórum.

Aluízio: Isso é conversa do povo, da rua, entendeu? Não procede. Não procede. Essas fichas foram mantidas de forma sigilosas.

Carolina Moraes: A gente procurou o que reportagens da época relataram sobre isso. E achou um texto do jornal Estado de S. Paulo de julho de 2007, dois meses depois da apreensão das fichas. Ele diz o seguinte:

As fichas médicas de 9.896 mulheres, apreendidas em uma clínica de abortos clandestinos de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, ficaram até ontem à disposição do público.

A reportagem conta que, além dos prontuários, tava no processo uma lista com os nomes das 10 mil pacientes, em ordem alfabética. Duas pessoas com quem a gente conversou disseram que conseguiram consultar essa lista na época.

A história relatada no jornal cita o juiz substituto Júlio Roberto Siqueira. Ele ocupava o lugar do Aluízio, que tava de férias.

Segundo o Estado de S. Paulo, primeiro o juiz substituto defendeu que as pessoas pudessem acessar o processo livremente. Mas ele recuou. A reportagem continua:

A partir de hoje, apenas os advogados que representam os denunciados pelo Ministério Público Estadual podem ter acesso aos documentos. Siqueira reconheceu estar aumentando a cada dia o número de pessoas, principalmente homens, interessadas em examinar o processo para saber os nomes das pacientes.

Carolina Moraes: O sigilo das pacientes estava comprometido e elas começavam a responder aos processos. As consequências do estouro da clínica também chegavam a quem trabalhava nela, atingindo principalmente a dona do consultório, a Neide Mota Machado.

O Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso do Sul abriu uma sindicância contra ela assim que a reportagem da Globo foi ao ar. Antes até de a polícia entrar na clínica.

A Neide sempre foi uma figura conhecida de Campo Grande, cidade que ela adotou depois de se formar em medicina na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba. A Neide fazia abortos na cidade desde os anos 1980, e abriu a própria clínica em 1989.

Durante quase 20 anos, ela atuou praticamente sem ser alvo da polícia, do Ministério Público e dos políticos locais. E não que ela fizesse questão de se esconder, passar despercebida. Pelo contrário.

Ewerton: Ela chegava, o escritório parava. Porque ela já conversava com a menina do café, Ela conversava, abraçava a secretária. Aquele jeitão dela.

Carolina Moraes: O Ewerton Bellinatti foi um dos advogados da Neide. A médica fazia parte dos principais círculos políticos e sociais da cidade e tinha até fundado uma escola de samba.

Em 2007, quando a TV Morena bateu na porta dela pedindo uma entrevista sobre planejamento familiar, a Neide concordou em aparecer no jornal. Pessoas que acompanharam a médica na época acham que ela não imaginava a proporção que o caso ia tomar –e que não tinha entendido que o acordo silencioso dela com a cidade tinha chegado ao fim.

Afinal, nas outras duas vezes em que foi processada, em 1994 e 1998, as investigações não foram pra frente.

Angela Boldrini: Mas dessa vez as coisas eram diferentes. Em maio, um mês depois do começo da investigação, a Justiça de Mato Grosso do Sul decretou a prisão da Neide. E ela fugiu.

Ewerton: Ela me liga e fala: "Eu não vou ser presa".

Angela Boldrini: A Neide foi denunciada por formação de quadrilha com os outros funcionários, por prática de aborto, por ameaça e por posse de uma arma que foi encontrada na clínica.

Ewerton: É difícil convencer uma pessoa que foi decretada a prisão "se apresenta". Isso é uma das coisas mais difíceis que tem, tem, imagine chegando pra você hoje você tem um mandado de prisão, você não sabe quando você vai sair, sendo que você pode tomar uma pena no caso dela, podia chegar a 70 anos.

Angela Boldrini: A médica passou a ameaçar a alta sociedade de Campo Grande. Pra pessoas próximas, ela saiu dizendo que muita gente importante procurou os serviços de aborto dela —e que ela tava pronta pra contar quem tinha sido.

Ewerton: E ela fica ensandecida. "Ewerton, eu tenho que contar, eu tenho que falar, eu quero falar isso, eu vou botar no nome desse nome". Deus, meu Deus, Neide… E aí fica essa briga, fica essa briga.

Angela Boldrini: O Ewerton e várias outras pessoas que a gente escutou dizem que realmente estavam na lista sobrenomes famosos do estado. O fato da clínica ter funcionado por quase vinte anos num bairro importante também reforça essa hipótese.

Mas apesar do medo que esses nomes importantes vazassem, a lista com eles nunca veio a público.

Carolina Moraes: O que começou a vazar foram nomes de mulheres comuns. Várias delas pobres, que tiveram que pedir descontos pra Neide pra fazer o procedimento. Famílias, amigos e colegas de trabalho começaram a encontrar nomes conhecidos nas páginas dos jornais, que tavam dominadas pelo caso.

Intimadas pra delegacia, várias não tinham advogado e acabavam se incriminando. Outras que diziam não ter interrompido a gravidez tentavam provar a inocência –uma delas chegou a levar o filho pra mostrar que não tinha feito o aborto.

[Paciente] A partir da hora que eu cheguei na delegacia para prestar o depoimento, que eu entreguei na recepção da delegacia, eu lembro perfeitamente tudo o que aconteceu. Eles já começaram a me olhar com outros olhos. E aí, quando eu entrei na sala do delegado para prestar depoimento, tinha três policiais juntos, como se eu fosse matar alguém ali dentro. Foram perguntas, assim, que me massacraram.

Era o começo de uma devassa na vida de centenas de mulheres.

Angela Boldrini: Eu sou Angela Boldrini e a apresentação, roteiro e produção do Caso das 10 mil são meus e da Carolina Moraes.

Carolina Moraes: A pesquisa foi feita junto com a Isabella Menon e a edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, e a identidade visual é da Catarina Pignato.

Angela Boldrini: Este episódio usou áudios da TV Gazeta e da TV Globo.

Carolina Moraes: Você encontra a transcrição deste episódio e fotos sobre o caso no site da Folha.

O próximo episódio sai na quarta-feira que vem. Segue o podcast no seu tocador favorito pra não perder.

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