Autoritários: como Orbán transformou a Hungria em laboratório global da direita

Primeiro-ministro investiu para tornar o país pós-comunista em uma referência no campo conservador

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São Paulo

Em 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), principal elo da família com a direita global, inaugurou a edição brasileira da CPAC, a maior conferência conservadora do mundo, criada nos Estados Unidos. Três anos depois, na terceira edição, ele dedicou todo o tempo de sua palestra para falar sobre o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.

"E por que eu vou falar dele? Porque a Hungria, gente, é um exemplo de sucesso. De muito sucesso", disse Eduardo na ocasião.

Essa admiração e as políticas de direita compartilhadas levaram Jair Bolsonaro a estreitar laços com Orbán nos quatro anos em que esteve na Presidência.

Homem de terno discursa em frente a púlpito num palco; atrás dele estão bandeiras da Hungrua
O primeiro-ministro Viktor Orbán durante discurso para integrantes do partido dele e apoiadores em Budapeste - Szilard Koszticsak - 17.fev.24/AFP

Um mês depois da palestra de Eduardo, Orbán foi ovacionado em solo americano, na CPAC do Texas. A certa altura do discurso, ele mencionou que os conservadores mais importantes do país queriam que ele falasse ali. E que ele ficou pensando por algumas semanas o que eles gostariam de ouvir. Afinal, a Hungria não é um poder global –os Estados Unidos, sim.

O terceiro episódio do podcast Autoritários mostra como a Hungria, um país pós-comunista de 10 milhões de habitantes, se tornou referência para conservadores em todo o mundo. Isso não aconteceu por acaso: foi uma política de Estado pensada meticulosamente por Orbán.

Em paralelo ao investimento do governo húngaro na construção de um soft power veio o desmonte da democracia húngara. O primeiro-ministro governa desde 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, o que permitiu que ele aprovasse uma nova Constituição.

Institutos que medem a qualidade das democracias no mundo, opositores e jornalistas dizem que Orbán minou a independência do Judiciário, tomou conta do mercado de mídia, sufocou ONGs e universidades, aprovou leis contra minorias, como a comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes, e redefiniu distritos eleitorais para favorecer o partido dele.

A série narrativa em áudio da Folha conta em sete episódios o processo de crise democrática que está em curso no mundo. Cada um deles se debruça sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).

Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.

Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).

A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.

Os episódios são publicados toda semana, às quintas-feiras. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

AUTORITÁRIOS
quando quintas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

Podcast Autoritários
Podcast Autoritários - Catarina Pignato

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO TERCEIRO EPISÓDIO

VIKTOR ORBÁN E O LABORATÓRIO CONSERVADOR

Ana Luiza Albuquerque: Para criar um Estado conservador de sucesso, são necessários alguns ingredientes. A receita do Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, inclui, nas palavras dele: jogar com as próprias regras. Ter a própria mídia. Ter fé. Fazer aliados. Construir instituições. O político húngaro está no 5º mandato, o 4º consecutivo. E agora tem se dedicado a compartilhar com o mundo o que aprendeu.

[Viktor Orbán] Discurso em húngaro

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Orbán dizendo que a receita está pronta, e que a Hungria é o laboratório onde o antídoto contra os progressistas foi testado.

Ele fez esse discurso para uma plateia de políticos, influencers e jornalistas de direita, húngaros e americanos, em 2022, em Budapeste. Era a primeira vez que a CPAC, a Conferência de Ação Política Conservadora, tinha uma edição na Europa. Essa conferência foi criada nos Estados Unidos e é o maior evento do tipo no mundo. Nela, políticos conservadores trocam informações e formam redes.

A CPAC chegou ao Brasil em 2019, pelas mãos do Eduardo Bolsonaro. Em 2022, na 3ª edição brasileira do evento, o deputado usou a palestra dele para elogiar o Orbán.

[Eduardo Bolsonaro] Esse aí é o primeiro-ministro da Hungria, o Viktor Orbán. E por que eu vou falar dele? Porque a Hungria, gente, é um exemplo de sucesso. De muito sucesso.

Ana Luiza Albuquerque: O discurso do Eduardo foi basicamente uma tradução da receita que o primeiro-ministro húngaro tinha apresentado.

[Eduardo Bolsonaro] Ele escreveu as 12 regras dessa história de sucesso, de como ele saiu do domínio total esquerdista para uma vida exemplar conservadora, vamos assim dizer. E a primeira lição dele é o que? Jogue com as suas próprias regras.

Ana Luiza Albuquerque: Um mês depois, Orbán foi ovacionado em solo americano, na CPAC do Texas. A certa altura do discurso, ele mencionou que os conservadores mais importantes do país queriam que ele falasse na conferência. E que ele ficou pensando por algumas semanas o que eles gostariam de ouvir. Afinal, a Hungria não é um poder global –os Estados Unidos, sim.

[Viktor Orbán] Your leaders should give an opening speech at our conferences in Hungary.

Ana Luiza Albuquerque: De fato, seria mais provável que americanos discursassem na Hungria. Como um país pós-comunista de 10 milhões de habitantes se tornaria referência para conservadores em todo o mundo? Por trás dessa história de sucesso está o desmonte da democracia húngara.

O primeiro-ministro governa desde 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, o que permitiu que ele aprovasse uma nova Constituição.

Institutos que medem a qualidade das democracias no mundo, opositores e jornalistas fazem alertas. Dizem que Orbán minou a independência do Judiciário, tomou conta do mercado da mídia, sufocou ONGs e universidades, aprovou leis contra minorias como a comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes e redefiniu distritos eleitorais para favorecer o partido dele. Essa é a receita do Orbán.

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o terceiro episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Ana Luiza Albuquerque: Não foram só as sucessivas reeleições do Orbán que fizeram dele uma estrela entre os conservadores. O alcance dele foi resultado de uma política de Estado. O governo investiu muito dinheiro em instituições que promovem o pensamento da direita. O objetivo era construir um aparato intelectual que defendesse e disseminasse o conservadorismo no país. Uma delas chegou a receber 1 bilhão e meio de dólares, segundo a imprensa húngara.

Essas instituições financiadas pelo governo do Orbán pagam bolsas para pesquisadores e professores estrangeiros passarem um tempo no país. Os bolsistas são de direita e costumam escrever e falar bem do governo. É uma estratégia de soft power, ou seja, de aumentar a influência global do país sem recorrer à força.

Richard Bodrogi (dublado): A gente sabe como ganhar as eleições e como derrotar os esquerdistas.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Richard Bodrogi, que trabalha no gabinete do Balázs Orbán, conselheiro político do primeiro-ministro –e apesar do nome comum, eles não são parentes. Balázs está por trás dessa estratégia de tornar a Hungria uma referência no campo conservador. Quando eu fui pra Budapeste, no final de 2022, eu tentei marcar uma entrevista com ele. Ele não me recebeu, mas pediu que o Bodrogi me encontrasse.

O Bodrogi me vendeu a ideia de que eles têm a receita para derrotar os progressistas e os esquerdistas.

Richard Bodrogi (dublado): A gente quer muito construir uma espécie de hub, um hub de conhecimento político. E para isso ser alcançado, não basta termos nossos pesquisadores e pensadores aqui, temos que convidar pessoas de diferentes países.

Ana Luiza Albuquerque: Eu perguntei para ele se o objetivo com essas bolsas era exportar as técnicas do governo, e ele respondeu que sim.

Richard Bodrogi (dublado): E até testá-las. Políticos de outros países podem testar nossas ideias, nosso conhecimento, na estrutura deles.

Ana Luiza Albuquerque: O escritor americano Rod Dreher é um desses pesquisadores convidados –e passou a fazer uma defesa pública do Orbán depois que chegou à Hungria. Ele diz que a visão positiva que tem do governo é totalmente espontânea –que ninguém o forçou a nada.

Eu me encontrei com ele num café perto do Parlamento, então você deve ouvir música e algum barulho no fundo da gravação.

Conservador e cristão, Dreher se mudou para Budapeste em 2021. Hoje ele trabalha no Instituto Danúbio –um dos que recebem financiamento do governo– ajudando a construir uma rede de intelectuais conservadores e líderes religiosos e levando essas pessoas para conferências na Hungria.

O Dreher conta que conheceu Orbán em 2019, quando participou de uma conferência na Hungria sobre liberdade religiosa. Ele diz que no fim do evento, quando os palestrantes estavam almoçando, um representante do governo disse que o primeiro-ministro queria se encontrar com eles.

Rod Dreher (dublado): Eu achei que a gente fosse apertar a mão dele, tirar uma foto e tchau. Ele sentou com a gente por uma hora e meia e respondeu todas as nossas perguntas. Perguntas difíceis. Eu não conheço nenhum líder que faria isso. Com certeza não um presidente americano.

Ana Luiza Albuquerque: O Dreher diz que no fim da reunião o Orbán falou: "Eu espero que vocês, conservadores, considerem Budapeste o lar intelectual de vocês". O Dreher achou que a ideia era legal, mas que nunca iria acontecer na prática.

Rod Dreher (dublado): Bom, tá começando a acontecer. E eles têm colocado dinheiro nisso.

Ana Luiza Albuquerque: Ele vê dois motivos para o governo investir nos institutos conservadores, e nas bolsas para pesquisadores estrangeiros. Primeiro, a Hungria tá isolada na Europa devido às políticas de direita e o desmonte da democracia no país –Orbán frequentemente entra em choque com a União Europeia. Nos últimos anos, basicamente o único aliado dele nessa empreitada contra o bloco foi o governo cristão e conservador da Polônia.

[reportagem Globo] A comissão europeia abriu procedimentos legais contra a Hungria e a Polônia por violarem direitos da comunidade LGBTQIA+.

Ana Luiza Albuquerque: Mas no fim do ano passado, a direita polonesa não conseguiu maioria nas urnas e teve que deixar o poder.

Então atrair esses pesquisadores estrangeiros, que costumam defender o governo húngaro publicamente, é uma estratégia para tentar diminuir esse isolamento e fortalecer uma narrativa positiva sobre Orbán.

Rod Dreher (dublado): A Hungria precisa de amigos, intelectuais conservadores que possam vir aqui ver o que está acontecendo e oferecer uma contra-narrativa para aquela que predomina em Washington e em Bruxelas.

Ana Luiza Albuquerque: O segundo motivo para esses investimentos, segundo o Dreher, é fazer com que essa rede de instituições conservadoras continue mesmo quando Orbán ou o partido dele, o Fidesz, não estiverem mais no poder.

Rod Dreher (dublado): Ele sabe que não vai ser primeiro-ministro para sempre. O Fidesz não vai estar no governo para sempre. Ele quer construir um estado profundo que vai sobreviver independentemente do que aconteça.

Ana Luiza Albuquerque: Viktor Orbán nasceu em maio de 1963 em um pequeno povoado a 50 km de Budapeste. Nos anos 80 ele se mudou para a capital para estudar direito, e depois de se formar, em 1989, passou alguns meses estudando numa instituição associada à universidade britânica de Oxford.

Esse período no Reino Unido foi financiado com uma bolsa do bilionário húngaro-americano George Soros, que enriqueceu no mercado de ações. Décadas depois, em meio à escalada autoritária, o filantropo judeu passou a ser alvo da retórica populista do Orbán. Soros investe muito dinheiro em fundações como a Open Society, criada por ele, que se propõe a promover a democracia e os direitos humanos ao redor do mundo.

No fim dos anos 80, a Hungria ainda estava ocupada pela União Soviética. E o Orbán fazia parte da Federação dos Jovens Democratas, um grupo liberal e anticomunista criado por 30 estudantes. Era o embrião do Fidesz, que nas décadas seguintes passaria por uma profunda transformação ideológica –assim como o próprio Orbán.

Em junho de 1989, dois anos antes do fim da União Soviética, Orbán fez um discurso histórico na praça dos Heróis, em Budapeste, para mais de 200 mil pessoas.

Aos 26 anos, ele subiu ao palco para exigir o fim da ditadura comunista na Hungria, e foi aplaudido várias vezes pela multidão.

No ano seguinte, já no declínio soviético, o país teve a primeira eleição livre, e Orbán foi eleito para o Parlamento. Em 1993, ele se tornou presidente do Fidesz.

Zsuzsanna Szelenyi, uma política liberal que fez parte da legenda, escreveu sobre o comportamento do Orbán naquela época. Em um artigo publicado no site The American Interest, em 2019, ela disse que o Orbán sempre pressionou o grupo para brigas políticas radicais, e que cada assunto era tratado como caso de vida ou morte. Nos anos 90, sob a direção do atual primeiro-ministro, o partido foi se afastando do liberalismo em direção ao conservadorismo.

Aliados de Orbán tentam justificar a transformação ideológica dizendo que ele era muito jovem quando se identificava como liberal, e que amadureceu. Ou falando que ele nunca foi um liberal de verdade.

Os opositores dizem que ele é um oportunista mesmo, que viu o espaço para o crescimento de um partido de direita e atendeu a essa demanda, com a defesa dos valores cristãos e nacionalistas.

Bálint Magyar: So these are his ideological battles.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Bálint Magyar, pesquisador na Universidade Centro-Europeia e ex-integrante do Parlamento húngaro.

Bálint Magyar (dublado): Eu acho que ele não é nem um pouco religioso. Pelo menos ele não era. E ele nunca foi um nacionalista antes. Não é que a visão dele mudou. Quando ficou claro pra ele que o liberalismo era minoritário na sociedade, ele mudou e foi em outra direção.

Ana Luiza Albuquerque: Em 1998 o Orbán se tornou primeiro-ministro pela primeira vez. O governo foi conservador, mas não autoritário. Aliados dizem que ele fez uma boa administração, mas que não tinha uma boa comunicação política, um bom marketing. Nas eleições seguintes, em 2002, a oposição de centro-esquerda venceu por uma margem pequena. Depois de dois mandatos da esquerda, a Hungria enfrentava os efeitos da crise econômica global de 2008, e o desemprego tava na casa dos dois dígitos. O governo também lidava com acusações de corrupção, uma questão que continua sendo um problema até hoje. No meio de todo esse contexto, Orbán conseguiu se eleger primeiro-ministro de novo em 2010. A partir daí, ele adotou uma série de medidas pra se manter no poder.

Quando eu perguntei sobre o Orbán para aliados, duas coisas foram citadas várias vezes. Primeiro, que ele lê muito. Segundo, que ele tem uma visão a longo prazo para o país.

Richard Bodrogi: It's not just for a few years or for this term.

Esse é o Bodrogi, que trabalha no governo e que falou antes no episódio.

Richard Bodrogi (dublado): Ele realmente pensa muito, muito longe, e começa processos que vão terminar em 10, 20, 30 anos.

Ana Luiza Albuquerque: Assim como outros eleitores do Orbán, o Bodrogi não está muito preocupado com a alternância no poder.

Na última década, Orbán ficou conhecido pelas posições anti-imigrantes e anti-LGBTQ. Junto ao desmonte das instituições que garantem o sistema de freios e contrapesos, esses posicionamentos colocam o primeiro-ministro em rota de colisão com a União Europeia, da qual a Hungria faz parte e depende financeiramente.

[reportagem Globo] A União Europeia deu início na semana passada a um processo disciplinar contra a Hungria por causa de atos antidemocráticos do governo de Viktor Orbán.

Ana Luiza Albuquerque: Em julho de 2022, um mês antes de ser ovacionado na CPAC do Texas, Orbán fez um dos discursos mais polêmicos dele, muito criticado pela comunidade internacional —entre outras coisas, pelo teor racista.

Existe um mundo mestiço, em que os europeus se misturam com as pessoas que vêm de fora da Europa. E existe o nosso mundo, onde os europeus se misturam entre si. Nós não queremos ser mestiços.

Desde 2010, Orbán está numa cruzada antiliberal e antiprogressista. Em um discurso de 2014, ele disse que estava construindo um estado iliberal e que nem toda democracia precisa ser liberal. E citou Singapura, China, Índia, Turquia e Rússia como nações de sucesso que não seguem o liberalismo.

Assumir essa identidade antiliberal permite que o Orbán se diferencie dos grupos intelectuais de Budapeste, e se coloque como alguém que entende os anseios do povo. Não ter nascido na capital também ajuda a construir essa imagem.

Renata Uitz: He adopts a very folksy persona.

Ana Luiza Albuquerque: Essa é a Renata Uitz, professora de Direito na Universidade Centro-Europeia.

Renata Uitz (dublado): Ele conversa com o húngaro comum que vive no interior, e opõe o seu estilo de falar com o dos intelectuais de Budapeste. Ele não é o garoto do interior que foi para a cidade e que passou a lustrar os sapatos.

Ana Luiza Albuquerque: A Renata diz que as técnicas do Orbán para se manter no poder foram muito bem-sucedidas. Segundo ela, apesar de ele ser carismático, não é isso que o mantém no governo, mas sim um sistema eleitoral que foi alterado para tornar a derrota dele difícil demais. A Renata lista uma série de requisitos que o primeiro-ministro já cumpriu –e deve continuar a cumprir– para se manter no poder.

Renata Uitz (dublado): Para ser reeleito, ele precisa controlar a máquina política. Isso significa que ele precisa controlar o próprio partido, porque não pode ter centros alternativos de poder. Por isso, centralizar o poder no partido, no estilo do Putin, é crucial. Ele também precisa controlar os parlamentares do Fidesz, para garantir que não tenha um golpe. E tem que controlar ainda as regras eleitorais.

Ana Luiza Albuquerque: Os métodos do Orbán foram alvo de pressão política interna e externa e de protestos de parte da sociedade civil —mas isso não foi suficiente para parar o primeiro-ministro. Ele encontrou um jeito de dominar o país sem derramar uma gota de sangue, diferentemente do que acontece com outros líderes autoritários, que com frequência reprimem violentamente as manifestações.

Renata Uitz (dublado): Na Turquia e na Rússia tem muito mais violência estatal para silenciar a oposição. O interessante do Orbán é que ele consegue fazer isso de uma forma relativamente pacífica.

Ana Luiza Albuquerque: O Orbán é o exemplo perfeito da ideia de que no século 21 o golpe acontece dentro do Estado, pelas leis.

Fábio de Sá e Silva: Legalismo autocrático foi uma expressão que foi cunhada pelo Javier Corrales e depois muito explorada pela Kim Scheppele, que é um pouco a ideia de que líderes autoritários podem utilizar o direito para consolidar o seu poder.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Fábio de Sá e Silva, advogado e professor na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Ele diz que antes existia um consenso de que as leis eram um obstáculo pro autoritarismo, especialmente por meio da Constituição, que impõe limitações para concentração de poder. Mas essa ideia já não se sustenta mais.

Fábio de Sá e Silva: Na verdade, existem meios de manipulação da ordem jurídica por parte desses líderes mais autoritários, em que você consegue operar dentro das formas que são colocadas aí pelas ordens constitucionais, mas para subverter essas mesmas ordens.

Ana Luiza Albuquerque: O Fábio dá o exemplo do caso brasileiro, durante o governo Jair Bolsonaro.

Ele é um dos acadêmicos que defendem que hoje as democracias morrem a partir de um processo mais sutil de dissolução das instituições.

Ele diz que o ex-presidente não conseguiu maioria legislativa para fazer reformas estruturais do sistema jurídico, mas que encontrou outras maneiras de usar o direito em favor dele. Assinando decretos, portarias e fazendo nomeações, o Bolsonaro podia governar sem, digamos, constrangimentos jurídicos ou políticos.

Fábio de Sá e Silva: A ministra Cármen Lúcia, inclusive, se refere a isso utilizando o termo cupinização das instituições. Você vai erodindo aos poucos e por dentro, o que eu acho que torna o papel do Direito inclusive mais relevante, porque ele ajuda a mascarar esse processo e ajuda a legitimar o autoritarismo de uma maneira que ele não fazia antes.

Ana Luiza Albuquerque: A Hungria tem um sistema eleitoral muito desproporcional, que vem de antes do governo Orbán. Em 2010, o Fidesz teve 53% dos votos, mas ficou com 68% das cadeiras no Legislativo. Foi o suficiente para passar a toque de caixa uma nova Constituição que enfraqueceu instituições que limitavam o poder do primeiro-ministro, como a Suprema Corte.

O número de ministros no tribunal passou de 11 para 15, permitindo que o Legislativo indicasse de uma vez quatro nomes novos, alinhados ao governo. O processo de indicação dos ministros também mudou. Antes tinha um sistema em que o indicado precisava do voto da maioria dos partidos. Depois, a decisão passou a ser da maioria do Parlamento –e o Fidesz tinha ampla maioria.

Os deputados ainda tiraram do cargo o presidente da Corte, que tinha criticado publicamente as reformas, especialmente a redução da idade para aposentadoria obrigatória dos juízes. Com essas mudanças, nos primeiros 3 anos de governo, os parlamentares aliados de Orbán indicaram 9 dos 15 ministros da Corte.

[reportagem Euronews] Ontem à noite eram dezenas de milhares no centro de Budapeste, reunidos em protesto contra a nova lei fundamental votada pelo parlamento. Para os cidadãos, as alterações aprovadas põem em causa a democracia.

Ana Luiza Albuquerque: O Judiciário tinha sido neutralizado. Mas ainda era preciso facilitar a vitória nas eleições. Então os distritos eleitorais foram redesenhados para favorecer o Fidesz, partido do Orbán, uma prática conhecida ao redor do mundo como gerrymandering.

Dos 199 deputados do país, 106 são eleitos pelo voto distrital. Cada distrito –não importa o tamanho dele– elege um deputado. O redesenho aprovado pelos governistas permitiu uma grande diferença populacional entre eles. Onde a oposição era forte, os votos foram concentrados em poucos distritos, limitando o número de parlamentares eleitos por ela. E onde a direita tinha uma base eleitoral, foram definidos vários pequenos distritos, permitindo a eleição de mais parlamentares pró-governo.

Um estudo de 2012, de uma consultoria húngara e da Fundação alemã Friedrich Ebert, mostrou a distorção do novo mapa. Se o Fidesz e a oposição tivessem o mesmo número de votos no total dos distritos, ainda assim o partido do Orbán teria 10 assentos a mais no Parlamento. Nas eleições de 2022, o observatório da Organização para Segurança e Cooperação na Europa declarou que a distribuição desigual dos eleitores estava em desacordo com o princípio da igualdade do voto. Ou seja, foi uma eleição livre, mas não necessariamente justa.

Fábio de Sá e Silva: Tem um aspecto que me fascina muito no caso da Hungria, digo analiticamente, porque politicamente é terrível.

Esse é o professor Fábio de Sá e Silva, de novo, falando de outro aspecto do legalismo autoritário do Orbán. Ele diz que o governo conseguiu desarticular as ONGs do país usando artifícios aparentemente legais.

Fábio de Sá e Silva: Não houve uma lei do governo Orbán que dizia "Olha, a partir de hoje está proibido se criar e se operar organizações da sociedade civil". Eles atacaram, por exemplo, por vias tributárias, se criaram obrigações tributárias e um cenário tributário absolutamente confuso, que, na verdade, permitiu com que os fiscais tributários da Hungria pudessem dar batidas em organizações da sociedade civil, verificar irregularidades e fechar essas organizações, ou então impor multas a essas organizações, o que, na prática, inviabilizou o seu funcionamento.

Ana Luiza Albuquerque: A liberdade acadêmica também entrou na mira do governo.

[reportagem Euronews] Um mega protesto em Budapeste mantém a pressão sobre o governo húngaro na sequência de uma lei controversa para encerrar a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata norte-americano, George Soros.

Ana Luiza Albuquerque: O Soros virou um bode expiatório não só da direita húngara, mas da direita global. O Fidesz e o Orbán acusam o bilionário de estimular a entrada de imigrantes na Hungria, por meio de fundações como a Open Society. Críticos do governo dizem que essa campanha poderosa contra Soros, que é judeu, é uma mensagem velada para reforçar o antissemitismo.

Em 2017, o Parlamento governista aprovou uma lei que atingia diretamente a Universidade Centro-Europeia e na prática provocava a expulsão dela. O texto diz que universidades estrangeiras devem ter um campus nos países onde elas emitem diplomas, caso contrário não podem funcionar na Hungria. A instituição do Soros, por exemplo, estava autorizada a expedir os certificados nos Estados Unidos, e assim precisava ter uma base ali –o que não era o caso. Na época, a comunidade internacional reagiu e rolaram vários protestos na Hungria. O governo não cedeu e, em 2019, as aulas da Universidade Centro-Europeia tiveram que ser transferidas para a Áustria.

A partir de 2010, o Parlamento aprovou leis que aumentaram o controle e a regulação do governo sobre a imprensa. Instituições internacionais, como a Organização para Segurança e Cooperação na Europa, apontaram que a reforma limitava a pluralidade e aumentava o risco de interferência política sobre a mídia.

Opositores e organizações que defendem a liberdade de imprensa acusam o governo de ter tomado controle do mercado também por meio de oligarcas aliados ao primeiro-ministro, que teriam comprado empresas de mídia. Segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras, 80% dos veículos de comunicação húngaros estão na prática nas mãos do Fidesz.

Jornalistas não alinhados ao Orbán são barrados de entrevistas coletivas e têm dificuldade em conseguir informações públicas. Em 2021, um consórcio de veículos que incluía o inglês The Guardian revelou que repórteres húngaros tinham tido os celulares infectados com o Pegasus.

Se você tá com a gente desde o começo, você deve lembrar que a gente já falou dessa ferramenta no primeiro episódio —se não, eu sugiro que depois você ouça. Ela permite que o invasor tenha acesso total ao aparelho. Um deputado do Fidesz confirmou na época que o governo húngaro comprou o Pegasus, mas disse que o uso foi dentro da lei.

O professor Fábio de Sá e Silva cita uma metáfora de uma pesquisadora americana que estuda o legalismo autocrático e o caso húngaro. Essa comparação ajuda a entender melhor o conceito.

Fábio de Sá e Silva: Uma coisa inclusive que a Scheppele fala que é super interessante, ela fala do Frankenstate. Toma de empréstimo essa metáfora a partir do Frankenstein. Ela dizia que o Frankenstein era um corpo que era formado por diversas partes de outros corpos e que na verdade o que torna o Frankenstein monstruoso não são as partes individualmente, mas é o conjunto.

Ana Luiza Albuquerque: Da mesma forma, se a gente olha isoladamente para uma lei aprovada pelo governo Orbán, a intenção antidemocrática pode não ficar tão clara. Mas quando a gente observa o conjunto, percebe como a legislação foi usada para fazer o autoritarismo avançar no país.

Eu cheguei em Budapeste em uma tarde fria de dezembro de 2022. Eram 3 da tarde e o sol já estava se pondo. Eu desembarquei do avião e entrei num pequeno ônibus. Quando olhei pela janela, a primeira coisa que vi foi um anúncio curioso numa daquelas pontes que conectam o avião com o terminal. No meio do cartaz tinha uma bola laranja, com alguns bonequinhos desenhados em branco, dando as mãos. Uma frase em espanhol atravessava a imagem: Hungria, amigo de las famílias. Na hora eu pensei… tô no lugar certo: era esse tipo de coisa que eu estava esperando ver.

Alguns dias depois da minha chegada, eu encontrei com o Bálint Magyar, pesquisador da Universidade Centro-Europeia. A gente marcou num prédio da instituição no centro da cidade –como eu te falei antes, as aulas tiveram que ser transferidas para a Áustria, mas nesse edifício em Budapeste ainda acontecem atividades de pesquisa.

Eu queria falar com ele sobre os três pilares do governo Orbán: Deus, nação e família.

Tanto a retórica do primeiro-ministro quanto as políticas públicas do país reforçam esses valores o tempo todo. Eu perguntei para o Bálint se ele acha que o Orbán realmente acredita no que ele prega.

Ana Luiza Albuquerque: Do you think Orbán really believes in the values he defends like God, family?

Bálint Magyar: No, no, no. It's also, again, if you go to this…

Ana Luiza Albuquerque: Ele respondeu que não cinco vezes e abriu um dos livros que escreveu, na página 610. Ali tinha uma tabela com os três valores (Deus, nação e família), a função que cada um deles cumpre para o Orbán e quais os grupos estigmatizados por cada um.

Por exemplo, família: para o primeiro-ministro significa um homem, uma mulher e os filhos. Nesse caso, os estigmatizados são as minorias LGBTQ. Ou seja, quando o Orbán defende o nacionalismo cristão e o modelo de família patriarcal, ele está apostando naquela estratégia populista de construir inimigos para mobilizar os apoiadores dele.

Marina Shlessarenko Barreto: Por que você precisa construir inimigos? Porque você precisa polarizar a sociedade para engajar sua base. Para você ter uma identidade, um pertencimento com um segmento da população que se vê órfão de ideologia, de orientação na sua vida.

Essa é a Marina Shlessarenko Barreto, doutoranda em Ciência Política e pesquisadora do Laut, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.

Marina Shlessarenko Barreto: Criar esses antagonismos na sociedade ajuda o estabelecimento de um projeto de poder e a fidelização de uma base que não se sente representada, que não se sente segura em um mundo ameaçado pela conquista de direitos efetivamente democráticos, de minorias que até então eram vistas como invisíveis e duramente reprimidas.

Ana Luiza Albuquerque: No caso da Hungria do Orbán, os inimigos são principalmente dois: as pessoas LGBTQ e os imigrantes.

O primeiro-ministro tem encorajado sentimentos nativistas, promovendo políticas duras contra a imigração. A ideia do nativismo é que as pessoas que nasceram no país devem ter prioridade sobre os imigrantes, o que muitas vezes está ligado à xenofobia.

[reportagem TV Brasil] A Hungria vai construir um muro na fronteira com a Sérvia para barrar a entrada de imigrantes ilegais. A Hungria faz parte da União Europeia e serve como porta de entrada pros países do bloco.

Ana Luiza Albuquerque: Esse muro foi construído em 2015, quando a crise durante a guerra civil na Síria fez com que milhares de refugiados tentassem asilo na Europa.

As medidas não pararam aí. Três anos depois, o Parlamento húngaro aprovou leis conhecidas como "Stop Soros", que criminalizavam qualquer pessoa ou grupo que oferecesse ajuda para um imigrante ilegal conseguir asilo.

O Orbán também já acenou para uma teoria conspiratória da ultradireita, The Great Replacement, ou A Grande Substituição. A gente falou dela no episódio sobre o primeiro-ministro indiano Narendra Modi. A ideia é que existe um plano das "elites e dos globalistas" para substituir cidadãos brancos por imigrantes não-brancos.

Em um discurso em Budapeste em 2022, Orbán disse que existe uma tentativa de contornar a falta de crianças europeias cristãs trazendo adultos imigrantes de outros lugares, de fora da Europa.

Essa postura nacionalista também fica clara nos embates do país com a União Europeia. O bloco chegou a congelar 22 bilhões de euros que seriam direcionados para o país, numa tentativa de forçar o governo a garantir independência do Judiciário, liberdade acadêmica e direitos LGBTQ.

Do outro lado, Orbán frequentemente usa o poder de veto como chantagem, barrando políticas importantes que o grupo europeu quer aprovar. No fim do ano passado, o bloco discutia descongelar parte do financiamento para a Hungria para que Orbán não vetasse a liberação de verba para a Ucrânia, em meio à guerra com a Rússia. Os recursos acabaram destravados no começo deste ano.

Marina Shlessarenko Barreto: Então, no último discurso de reeleição dele, em 2022, ele falou: Olha, o mundo inteiro consegue ver essa vitória nossa, inclusive Bruxelas. Então ele já estava dando ali um recado muito forte para se antagonizar, colocar de novo nesse antagonismo.

Ana Luiza Albuquerque: Essa é a Marina Barreto de novo.

Marina Shlessarenko Barreto: Toda essa situação da guerra na Ucrânia, também, ele vem sendo um ponto de veto importante para a concessão de recursos. Então ele não abaixa a cabeça nesse mundo tão, segundo ele, povoado de medos e inseguranças. Ele consegue agir contra o império mundial, etc, a grande mídia, o conglomerado. Então ele consegue instilar esses sentimentos conspiratórios e se colocar como quem vai resolver todos esses problemas que ele mesmo criou.

Ana Luiza Albuquerque: O Estado também foi usado para estigmatizar as minorias LGBTQ. A Constituição húngara de 2011 definiu o casamento como a união de um homem e uma mulher. Homossexuais não podem casar ou adotar crianças. Depois, outras leis restringiram ainda mais esses direitos. Uma delas, de 2021, proibiu pessoas LGBTQ de aparecer em materiais educacionais ou programas de TV voltados para crianças e adolescentes. A medida é parecida com uma lei russa de 2013.

Marina Shlessarenko Barreto: Se você vai para uma livraria e tem um livro sobre temática LGBT, ele tem que estar sob um plástico para você não poder manusear. Então tem que ter toda uma série de restrições que diminuem o direito dessas pessoas e colocam elas como inimigas da nação.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2020, o Parlamento aprovou outra lei banindo a mudança legal de gênero. A Antónia Hegedus, que trabalha no setor financeiro de uma ONG de defesa dos direitos LGBTQ, foi uma das pessoas trans prejudicadas por essa medida. Em 2018 ela começou a pesquisar como poderia mudar legalmente o gênero e o nome dela. Mas até 2020 ela não tinha dado entrada no pedido –e agora não tem mais jeito.

Antónia Hegedus (dublado): Todos os dias as pessoas presumem, corretamente, que eu sou uma mulher. Quando eu mostro minha identidade, elas ficam confusas, e não é agradável pra mim. É constrangedor. Tem muitas situações que a gente precisa da identidade. Para tirar dinheiro no banco, por exemplo. Pode ser muito problemático.

Ana Luiza Albuquerque: Ela diz que quase foi barrada de votar em 2022, que teve muita dificuldade para ser vacinada contra a Covid-19 e que foi rejeitada em um hospital porque o nome social dela não foi alterado no seguro saúde.

A Hungria legalizou o aborto em 1953, bem antes de outras nações europeias como França, Itália, Espanha… Mas nos últimos anos algumas restrições foram aprovadas, e organizações da sociedade civil temem que esse seja só o começo.

Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam um aborto a primeiro obter um relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto –ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.

A medida foi assinada pelo ministro do Interior, que disse que existem equipamentos modernos que detectam o batimento no início da gravidez, o que segundo ele poderia proporcionar "informações mais completas" para as grávidas.

O governo também aprovou políticas para estimular as famílias heterossexuais a terem filhos. Isso é uma resposta à taxa de natalidade do país, considerada baixa para os padrões globais. Até 2050, a população húngara deve cair de 9,7 milhões para 9,2 milhões, segundo a OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. No mesmo período, a parcela economicamente ativa da população deve recuar de 65% para 58%.

O governo tem tentado resolver essa crise demográfica com políticas públicas conservadoras. Uma delas definiu que mães com menos de 30 anos não precisam mais pagar imposto sobre a renda. O mesmo já valia para mães com 4 filhos ou mais.

Essas políticas colocaram a Hungria como referência de um movimento de defesa do conceito conservador de família. O país já sediou vários eventos que tratam desse tema. Um deles, a Cúpula Demográfica de Budapeste, teve uma participação especial na edição de 2019…

[Damares Alves] E essa mistura de raça, cor e língua, que fez essa nação chamada Brasil, que hoje é liderado por um incrível homem, que quer trazer o Brasil pro cenário mundial como um país pró-família, pró-vida.

Ana Luiza Albuquerque: Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro, falou por 11 minutos naquele dia.

Felipe Soares: Bom, a cúpula já está na sua quinta edição. Ela acontece desde 2015 e ela surge por conta da ascensão do governo de extrema-direita de Viktor Orbán, na Hungria.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Felipe Soares, mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal do ABC e autor de um artigo sobre a participação do Brasil no evento.

Felipe Soares: O grande objetivo dessa cúpula é pensar o envelhecimento da população.

Os idealizadores da cúpula acreditam que a crise demográfica vai ser enfrentada na medida que o modelo de família tradicional for fortalecido. Isso tem sido chamado como modelo húngaro, esse fortalecimento desse modelo de família.

Ana Luiza Albuquerque: O Felipe diz que a participação brasileira na cúpula rompeu com o posicionamento progressista que o país tinha firmado nos governos anteriores em relação a questões de gênero e sexualidade.

Felipe Soares: O discurso da Damares fez uma grande mistura entre dados científicos e dados estatísticos, permeado por uma série de questões morais e bastante polêmicas.

Ana Luiza Albuquerque: A Damares repercutiu pautas de costumes que a gente ouviu muito durante o governo Bolsonaro, como o combate à chamada ideologia de gênero e ao direito ao aborto. E fez um chamado pros países conservadores se unirem.

[Damares Alves] Eu não poderia deixar de aproveitar essa oportunidade para convidar todos os estados aqui representados para juntarem-se a nós na formação de um grupo de países amigos da família, para no âmbito da Organização das Nações Unidas defender e resgatar os valores que alguns setores tendem muitas vezes a ignorar.

Ana Luiza Albuquerque: O Felipe diz que Orbán e Bolsonaro têm algumas semelhanças e fazem parte de um movimento neoconservador.

Felipe Soares: Esse movimento aglutina neoliberais e conservadores, e eles tratam de justificar que as crises sociais e econômicas se dão por uma disfunção moral das famílias.

Ana Luiza Albuquerque: No centro de Budapeste tem um prédio que chama bastante a atenção. No telhado tem uma grande estrutura metálica projetada de forma paralela ao chão, tipo uma marquise gigante, com algumas letras recortadas. Quando o sol bate ali, atravessando os buracos das letras, uma sombra se forma na fachada, com a palavra "terror".

Nesse prédio, centenas de pessoas foram presas, torturadas e interrogadas. Primeiro pelo partido nazista húngaro, em 1944 e 1945, e depois pela polícia secreta comunista, de 1945 a 1956. Em 2002, um pouco antes de o Orbán perder a reeleição, o primeiro governo dele financiou e inaugurou ali o museu do Terror.

O museu trata o período nazista e o comunista como dois males iguais –ainda que as salas dedicadas ao segundo sejam de longe a maioria. A exposição retrata a Hungria como vítima das ocupações, ignorando que o país foi aliado da Alemanha nazista e teve um papel importante no Holocausto.

O museu foi criticado pelo revisionismo histórico, e Orbán foi acusado de fazer uso político do espaço para impulsionar a narrativa anti-socialista em período eleitoral.

Quando eu estava saindo do museu, eu abri o livro de visitas e me surpreendi com um recado em português, que dizia: "Fora, Bozo. Fora, Viktor Orbán".

[Jair Bolsonaro] Prezado Orbán, é uma satisfação muito grande estar na Hungria. Considero seu país o nosso pequeno grande irmão. Comungamos também da defesa da família com muita ênfase.

Ana Luiza Albuquerque: Na receita de Orbán para um estado conservador de sucesso, um dos itens é: faça amigos. Ele diz que os progressistas se apoiam não importa o que aconteça, enquanto os conservadores brigam por qualquer assunto. Orbán entendeu que era preciso se unir com políticos que pensam como ele.

Em janeiro de 2019, ele foi o único líder europeu que compareceu à cerimônia de posse de Bolsonaro, além do presidente de Portugal, que seguiu uma tradição. Nos anos seguintes, Hungria e Brasil estreitaram laços, com visitas frequentes de autoridades. O então chanceler Ernesto Araújo, por exemplo, se encontrou pelo menos duas vezes em 2019 com o húngaro Péter Szijjártó, ministro das Relações Exteriores.

[Ernesto Araújo] Essa nova relação entre Brasil e Hungria começou no dia 1º de janeiro. Na verdade, começou antes. Nós já estávamos trabalhando, sabíamos da grande afinidade de ideias, da grande afinidade de propósitos, de programas, entre os dois governos, e estamos concretizando isso na prática.

Ana Luiza Albuquerque: Em julho de 2022, poucos meses depois da ida de Bolsonaro à Hungria, foi a vez da então presidente Katalin Novák, aliada do Orbán, visitar o Brasil. Ela escreveu no Twitter que foi convidada porque o governo brasileiro estava acompanhando de perto as políticas públicas húngaras voltadas para a família.

Naquele ano, Orbán gravou um vídeo apoiando a reeleição de Bolsonaro. Ele disse que, apesar da esquerda e do globalismo, o aliado teve coragem de colocar o Brasil em primeiro lugar, e Deus acima de tudo.

[Viktor Orbán] Go Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Uma reportagem da Folha mostrou que o chanceler da Hungria chegou a oferecer ajuda para a reeleição de Bolsonaro durante uma reunião com Cristiane Britto, que substituiu Damares no ministério quando ela se candidatou ao Senado. Segundo o relatório da viagem, escrito pela Cristiane, o chanceler perguntou se tinha algo que o governo húngaro poderia fazer para ajudar.

Não seria a primeira vez que Orbán teria tentado dar uma forcinha para um amigo. Na campanha de 2022, a francesa Marine Le Pen, uma das principais figuras conservadoras da Europa, conseguiu um empréstimo de 10 milhões de euros com o banco húngaro MKB. Um dos acionistas desse banco é amigo de infância do Orbán, e enriqueceu durante o governo dele. Segundo uma reportagem do Financial Times, pessoas do círculo interno do primeiro-ministro pediram que o banco liberasse o valor para Le Pen.

Donald Trump foi outro líder que se aproximou de Orbán. Em 2019, em uma visita do húngaro à Casa Branca, o então presidente americano elogiou o trabalho do aliado e disse que, como ele, Orbán era um pouco polêmico.

[Donald Trump] Viktor Orbán has done a tremendous job in so many different ways. Probably like me a little bit controversial, but that's ok.

Ana Luiza Albuquerque: O primeiro-ministro respondeu que tava muito feliz de estar ali e que queria discutir temas globais sobre os quais os dois países tinham afinidades, como a imigração ilegal, o terrorismo e a proteção às comunidades cristãs.

Nas eleições húngaras de 2022, Trump disse que apoiava totalmente o aliado. Alguns meses depois, na época da CPAC do Texas, ele recebeu Orbán no clube de golfe dele em Nova Jersey.

Rod Dreher: You saw that Orban went to CPAC.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Rod Dreher, o escritor conservador que falou no começo do episódio. Ele diz que a ida do Orbán à conferência foi uma grande surpresa.

Rod Dreher (dublado): Eu não acho que isso teria acontecido se o Tucker Carlson não tivesse vindo pra Hungria e transformado o Orbán numa espécie de estrela do rock entre os conservadores americanos.

Ana Luiza Albuquerque: Carlson, que era âncora do canal de direita Fox News, apresentou o programa dele diretamente de Budapeste durante uma semana em agosto de 2021. Na época ele filmava um especial chamado "Hungria vs Soros: A luta pela civilização". Carlson disse que foi pra Hungria para ver de perto se o que falavam sobre Orbán nos Estados Unidos era verdade.

A propaganda que Carlson fez do Orbán, inclusive elogiando o governo em uma palestra num instituto húngaro, de fato impulsionou a popularidade do primeiro-ministro entre os conservadores americanos.

[Tucker Carlson] I was impressed personally by the response of your government to the 2015 migrant crisis.

Ana Luiza Albuquerque: Nesse evento, o Carlson disse que ficou impressionado com a resposta húngara à crise migratória de 2015.

[Tucker Carlson] Hungary stood alone essentially in saying "no, thanks".

Ana Luiza Albuquerque: O Dreher diz que o primeiro-ministro entendeu que, para essa disputa ideológica que os conservadores querem travar, as instituições mais importantes não são as políticas, mas as culturais –e que os americanos deveriam aprender com esse exemplo. Para ele, o setor privado dos Estados Unidos foi capturado pela esquerda progressista, e existe um desequilíbrio de poder.

Ele fala que o único Republicano que pode ter absorvido algo do Orbán é o governador da Flórida, Ron DeSantis.

[reportagem Band] A crise entre a Disney e o político começou em 2022, quando a companhia criticou uma lei promovida por DeSantis que impede a abordagem de questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero nas escolas primárias da Flórida.

Ana Luiza Albuquerque: Essa medida, chamada pela oposição de "don't say gay", foi aprovada um ano depois que uma lei muito parecida passou no parlamento húngaro.

Rod Dreher: When DeSantis did that, I said: "that’s straight Orbán".

Ana Luiza Albuquerque: O Dreher não tem tanta confiança que as ideias de Orbán possam ser aplicadas nos Estados Unidos, a não ser que aconteça um colapso econômico.

Rod Dreher (dublado): Mas pelo menos isso faz você pensar: como seria um governo conservador que se importa mais com a família do que com Wall Street?

Ana Luiza Albuquerque: A cartilha do Orbán ainda não foi colocada em prática nos Estados Unidos –talvez nunca seja. Mas, do jeito dele, Donald Trump abalou os pilares de uma democracia que até então era considerada muito resistente. No próximo episódio eu te conto como isso aconteceu.

[Donald Trump] We’re gonna walk down to the Capitol!

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários. Se você gostou do episódio avalia a gente e segue o podcast na sua plataforma favorita para não perder os próximos.

A edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é do Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.

O episódio usou áudios da HírTv, C-SPAN, TV Globo, Voks News, Euronews, TV Brasil, CNN Portugal, Poder 360, Fox News, Band e NBC News.

Na dublagem você ouviu as vozes de Flávio Ferreira, Joelmir Tavares, Paula Soprana, Dani Avelar e Mauro Zafalon.

Até semana que vem.

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