'Para a democracia brasileira, é importante que o partido de classe média ganhe eleições', diz André Singer

Ele participou de encontro promovido pela Folha e pela Companhia das Letras para marcar o lançamento de seu último livro

Philippe Scerb
São Paulo

O sistema partidário brasileiro tem se organizado historicamente em torno de três grandes partidos –um popular, um de classe média e outro "do interior", clientelista. Em momentos de realinhamento, nos quais “a população de baixa renda percebe qual é o seu representante”, o partido de classe média passa a ter sérias dificuldades em ganhar eleições e é atraído para uma posição de golpe, como ocorreu com a UDN, em 1964, e o PSDB, em 2016.

A estabilidade da democracia brasileira depende, de certa forma, do sucesso eleitoral do partido de classe média —sobretudo em um contexto em que o partido do interior descarta uma posição de centro em busca de maiores recursos do Estado. 

Nesse sentido, o agora MDB teria desempenhado, recentemente, “ao liderar, organizar o golpe parlamentar e chegar ao poder”, papel comparável ao do PSD ao apoiar o golpe de Estado de 1964.

Essa é a leitura de André Singer, professor titular de ciência política da USP e colunista da Folha, que participou de encontro promovido pelo jornal e pela Companhia das Letras, na última segunda (18), para marcar o lançamento de seu último livro “O Lulismo em Crise: um Quebra-cabeça do Período Dilma
(2011-2016)”. 

Laura Carvalho, professora do Departamento de Economia da FEA-USP, e Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional da FGV-SP, ambos colunistas da Folha, também participaram do debate, cuja
mediação ficou a cargo da jornalista Mônica Bergamo.

"Pode parecer estranho o que vou dizer, mas é importante para a democracia que o PSDB ganhe no voto, que haja alternância de poder", afirmou Singer.

No livro, que, segundo Oscar Vilhena, tem o mérito de não agredir ou esconder fatos “em tempos em que os argumentos são feitos e recebidos a faca”, Singer parte da ideia de que o impeachment colocou a democracia sob ameaça para examinar as suas causas. Depois do avanço lento promovido pelos anos Lula, a aceleração por Dilma do modelo conciliatório no sentido de um reformismo forte tornou o lulismo vítima de suas próprias contradições. 

Singer recorre a um conjunto amplo de dados e acontecimentos para descrever o que chama de ensaios desenvolvimentista e republicano. Dois movimentos que, aliados a um comportamento errático de Dilma, teriam despertado a hostilidade de importantes setores da sociedade e do mundo político e levado
ao “golpe parlamentar”, que tirou do poder a presidente eleita e aprofundou a crise do lulismo.

ENSAIO DESENVOLVIMENTISTA 

No encontro, os convidados concentraram suas falas nas hipóteses de Singer ligadas às ofensivas de Dilma nos campos econômico e ético-político.

Laura Carvalho elogiou o esforço do autor em oferecer uma análise para o período que articula eventos e aspectos importantes, como as manifestações de junho de 2013 e a recente reconfiguração da estrutura social brasileira.

A professora da FEA-USP, porém, manifestou uma divergência quanto ao caráter desenvolvimentista da política econômica de Dilma no início do primeiro mandato. Segundo ela, há pouco de “rooseveltiano” em uma política em que o investimento público diminui e perde centralidade. O recuo do governo e a
elevação dos juros seriam, assim, resultados de um fracasso da política econômica e da consequente pressão inflacionária. 

Eles não decorreriam, como sugere Singer, da perda do apoio da burguesia industrial ao governo e da
fragilização da coalizão produtivista, tão cara ao lulismo.

Em resposta, o cientista político afirmou que não houve redução do investimento público durante o governo Dilma. Ele ressaltou, porém, que a discussão que faz no livro não é econômica e não pretende tomar partido no amplo debate que envolve os especialistas da área.

Interessa-lhe apontar para a forte intervenção do Estado, que marcou a política econômica do período e a resistência do empresariado industrial, beneficiado pelas medidas. "Esse é o enigma que a ciência política deveria perseguir. Pois, se no capitalismo os empresários têm poder de veto, a questão que se coloca
para a esquerda é como mudar o país se a burguesia industrial não quer um projeto político mesmo que a favoreça”, disse.

ENSAIO REPUBLICANO E CRISE DEMOCRÁTICA 

Oscar Vilhena dedicou sua intervenção a comentar a hipótese de ensaio republicano. Afirmando que a Constituição de 1988 traduz um “pacto maximizador” estabelecido entre os atores políticos, as corporações e a sociedade, o professor da FGV-SP sugeriu que o julgamento do mensalão teria
inaugurado um conflito entre o estamento da política e o estamento do direito.

Nesse cenário, Vilhena questionou se os atores institucionais não teriam iniciado um processo de escalada “no uso exorbitante das suas competências constitucionais”. 

Ou seja, na medida em que políticos utilizam todos os recursos possíveis na disputa pelo poder e representantes do Judiciário ampliam ao máximo suas atribuições, entraríamos “num jogo sujo institucional em que todos usam sua força para atentar contra o outro”. Estaria aí, talvez, o cerne da crise atual da democracia brasileira.

Segundo Singer, o jogo pesado das instituições não explica a crise. Ela consistiria, a rigor, na ruptura de outros dois pactos que permeiam a Constituição. O “pacto rooseveltiano”, no sentido da construção de um Estado de bem-estar social, e um pacto democrático, que permite às grandes forças políticas, ou grandes classes sociais, disputar as eleições e governar o país.

Em resposta a perguntas elaboradas pela plateia e por Mônica Bergamo, Singer acrescentou que o pacto democrático é ameaçado quando o partido popular não pode concorrer e governar.

 O bom desempenho de Lula nas pesquisas eleitorais demonstraria, por um lado, que o programa petista de melhoras sem ruptura está vivo. Por outro lado, sinais importantes indicariam uma pressão pela
ruptura do realinhamento e pelo fim dos três partidos que organizam a disputa.

“É como se setores da sociedade brasileira não pudessem viver com uma estrutura de partidos que representa as classes sociais”, afirma Singer. E o maior indicador disso seriam os eleitores de Bolsonaro, “que querem extinguir o lulismo e acabar com a possibilidade de um partido popular chegar ao poder e governar."

Questionado se não faltou autocontenção ao PT, Singer disse que quem polariza é justamente o eleitorado de Bolsonaro e que “o lulismo é conciliador."

“Não acho que houve falta de contenção da esquerda para permanecer no poder. Ninguém falou em ocupar o Palácio do Planalto depois do impeachment. A esquerda ficou do lado da democracia o tempo todo."

"PARTIDO DA JUSTIÇA"

Em relação ao combate à corrupção, o cientista político afirmou que todas as pessoas têm que abraçar “essa bandeira republicana” e que todos os partidos devem explicação à população. 

A Operação Lava Jato, porém, apesar do mérito de ter revelado esquemas ilícitos, teve caráter faccioso ao “centrar fogo no PT e em Lula e desequilibrar o sistema político”. Algo que ficaria evidente na observação de evidências empíricas “como o famoso Power Point do procurador Deltan Dellagnol."

Em meio a um cenário de confronto entre os estamentos político e jurídico, a sublevação do último sinaliza almejar mais do que a aplicação da justiça para todos. A expressão “tenentismo togado”, do cientista político Luiz Werneck Vianna, para tratar dos atores da Lava Jato, descreve bem sua
aspiração a intervir na política.

Contudo, se os tenentes que ocuparam o Forte de Copacabana em 1922 tinham um programa político-social para o Brasil, o punitivismo emerge como bandeira única do "partido da Justiça". Afinal, os procuradores da Lava Jato sugerem, em chave negativa, que todos os grandes problemas do país serão resolvidos com o combate à corrupção.

A última pergunta da plateia veio do vereador Eduardo Suplicy (PT), que questionou a política de desonerações implementada pelo governo Dilma e a opinião de Singer acerca da renda mínima de cidadania. O autor disse que todo o campo de esquerda critica aquela política e que é a favor da
conhecida proposta de Suplicy.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.