Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Como ensaísta, Otavio Frias Filho dissecou contradições

Crítico, cético e eclético, autor faz refletir sobre o que pode parecer banal e também instrui

Otavio Frias Filho, sentado em sua mesa e sem terno, examina páginas impressas do jornal para aprovação
Otavio Frias Filho em sua sala na sede do jornal Folha de S.Paulo - Thea Severino-8.dez.15/Folhapress
Hélio Schwartsman
São Paulo

Ecletismo, clareza e precisão são as marcas de Otavio Frias Filho como ensaísta. Ao longo de quatro décadas como jornalista, ele produziu um vasto acervo de textos, tanto para a Folha como para outros veículos. Escrevia sobre temas tão variados como cinema, política, literatura, história e biologia.

Crítico implacável de si mesmo, além de um pouco cético em relação às possibilidades intelectuais do jornalismo, “que se comprime entre a véspera e o dia seguinte”, Otavio não se enamorava facilmente da própria produção. O nível de exigência que se autoimpunha assegura que os escritos que escolheu para perenizar em livros têm algo a dizer.

“De Ponta-Cabeça” (2000, Editora 34) reúne 99 artigos publicados de 1994 a 1999, período em que o autor assinou uma coluna semanal na página 2 da Folha.

São textos curtos, quase todos calcados em acontecimentos recentes, mas que vão além dos aspectos mais efêmeros do noticiário.

Sempre crítico, para não dizer na contracorrente, Otavio consegue a um só tempo nos fazer refletir sobre aquilo que poderia passar como banal e também instruir —sua erudição, que ele escrupulosamente escondia para não soar pernóstico, não cessava de me surpreender.

Otavio exercia o ceticismo, mas não chegava a ser um niilista. Sua desconfiança em relação ao jornalismo não o impedia de reconhecer sua importância como primeiro registro dos acontecimentos e suporte das interpretações mais imediatas, isto é, a matéria-prima com a qual depois o historiador trabalhará.

Nesse contexto, “De Ponta-Cabeça” tem ainda a felicidade de retratar momentos decisivos, como a reorganização do mundo pós-Guerra Fria e a popularização da internet, cujos efeitos ainda se fazem sentir.

“Seleção Natural” (Publifolha, 2009) é o meu livro favorito. Reúne ensaios de mais fôlego que o autor publicara nos 25 anos anteriores e que, em sua opinião, haviam sobrevivido ao teste da seleção natural. Ali encontramos desde reflexões sobre a ficção científica até uma análise da “Ilíada”, passando por Watergate e “A Fantástica Fábrica de Chocolates”.

A joia, na minha opinião, é o texto sobre o impacto do darwinismo e da sociobiologia sobre as ciências humanas. Nem sei se deveria revelar isso, mas Otavio vivia se queixando de que muitos textos da Folha conseguiam a proeza de ser ao mesmo tempo obscuros e superficiais. Talvez da Folha, mas não de Otavio.

Para escrever o ensaio “A descendência de Darwin”, Otavio passou meses, se não anos, consumindo e digerindo uma extensa literatura biológica com o objetivo de compreender um fenômeno capital para a nossa época, consubstanciado nas desavenças entre as ciências naturais e as humanidades.

O resultado é um texto profundo, límpido, vigoroso e conciso (para o tamanho da empreitada). Em poucas páginas, ele faz a genealogia das ideias e das obras que influenciaram o naturalista inglês, compila um elucidativo resumo de como a biologia evoluiu a partir dali e como isso põe em questão pontos centrais das humanidades. De quebra, ainda oferece às ciências humanas um programa de ação que lhe permita reagir ao assalto neodarwinista sem, para isso, ter de renunciar à ciência.

O terceiro livro de ensaios de Otavio é “Queda Livre” (2003, Companhia das Letras), de longe o mais inusitado.

Trata-se de uma coleção de reportagens em que o autor se coloca em situações extremas, como saltar de paraquedas ou viajar à Amazônia para consumir drogas alucinógenas, ou pelo menos extravagantes, como fazer uma peregrinação pelo caminho de Santiago, envolver-se no submundo da troca de casais e do sadomasoquismo, além de mergulhar no universo do suicídio, tornando-se plantonista do CVV (Centro de Valorização da Vida), serviço que dá suporte psicológico telefônico a quem está disposto a tirar a própria vida.

Esse volume surpreende em vários sentidos. Otavio era um sujeito intelectualmente prudente e bastante reservado. Ele, que desencorajava o uso da primeira pessoa até em colunas (considerava meio brega), não apenas fez um livro inteiro em primeira pessoa como um em que é o protagonista, metendo-se em atividades que à primeira vista têm muito pouco a ver com o autor.

Há muitas formas de descrever Otavio, mas elas certamente não incluem cultor de esportes radicais, nem peregrino em busca de êxtases místicos, nem sátiro percorrendo todos os salões da luxúria.

“Queda Livre” se torna menos enigmático quando começamos a ler os textos e verificamos que o autor transforma as experiências radicais em ocasião para exercícios intelectuais. A reportagem sobre o swing traz reflexões sobre o movimento de liberação sexual e a Aids; o texto sobre o CVV fala abertamente sobre suicídio, trazendo até revelações pessoais.

A conciliação, porém, é apenas parcial.

Ainda que um ilumine o outro, o Otavio que emerge de “Queda Livre” não é o mesmo que escrevia colunas cirurgicamente ponderadas e dirigia apolineamente o maior jornal do país. E acho que está aí a chave para entender melhor o autor.

Enquanto a maioria dos humanos tem horror à dissonância cognitiva e se serve de todos os truques à disposição do cérebro para calar contradições, Otavio convivia bem com elas. Arrisco até afirmar que sentia certo prazer, se não em experimentá-las, ao menos em identificá-las e, quando possível, destrinchá-las. É a marca dos livre-pensadores.

As ideias de Otavio estão pelo menos em parte preservadas nos textos e principalmente nos livros que escreveu.

Quem vai fazer falta é a pessoa física, a figura reservada, mas sempre gentil e solícita, o chefe rigoroso, mas motivador, que conseguia extrair o melhor de seus colaboradores. Ter convivido e trocado ideias com ele ao longo dos últimos 30 anos foi um aprendizado e um prazer.

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