Juiz das garantias vai evitar imagem de Judiciário parcial, diz ex-magistrado do TRF-4

Ex-presidente de associação diz que implantação tem sido influenciada pelo clima de flá-flu

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São Paulo

Juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Jorge Antônio Maurique é um dos signatários de manifesto divulgado por um grupo de 50 magistrados em apoio à figura do juiz das garantias, que integra o pacote anticrime aprovado no final de 2019.

Para eles, a nova figura colabora para "a preservação da imparcialidade do juiz de julgamento".

Pela nova lei, os processos criminais passarão a ter um juiz para a fase de investigação (o das garantias) e outro que será responsável pelo julgamento dos casos.

Maurique foi conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de 2007 a 2009 e presidiu a Ajufe (Associação dos Juízes Federais) de 2004 a 2006.

A entidade que um dia ele comandou agora contesta a criação do juiz das garantias, em uma ação no Supremo Tribunal Federal.

No ano passado, Maurique foi na mão contrária de boa parte dos colegas ao criticar o ex-juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça que até outubro de 2018 cuidava da Operação Lava Jato. Moro apareceu em troca de mensagens, obtidas pelo site The Intercept Brasil, que sugerem que ele orientou ações de procuradores da Lava Jato.

Ex-juiz federal Jorge Antônio Maurique
Ex-juiz federal Jorge Antônio Maurique - Sylvio Sirangelo /TRF4

Hoje, Maurique considera que o juiz das garantias evitaria casos como aquele. “Eu digo que vai evitar no futuro que se tenha esse tipo de visão, esse tipo de preconceito e visão de um Judiciário parcial”, afirma.

Por que o sr. é favor do juiz das garantias? Tem um livro que era muito lido, “As Misérias do Processo Penal” [Editora Pillares], do Francesco Carnelutti. Lá ele dizia que o juiz reconstrói uma história e ele não é inimigo de ninguém. Ele é um terceiro fora das partes, um observador distante.

Tem outro livro que estudei nos meus tempos de faculdade, de um promotor de Justiça [Nilo Bairros de Brum], “Os Requisitos Retóricos da Sentença Penal” [Revista dos Tribunais]. Ele fala que as pessoas envolvidas no processo, o juiz e o promotor, principalmente o juiz, ficam contaminados pela história da pessoa [o réu] quando ele [juiz] participa da apuração da prova.

Esta é uma realidade que eu vivenciei. Quando você acompanha as provas indiciárias, participa da fase do inquérito, de uma certa forma fica condicionado ou mais suscetível a um juízo de condenação. Porque você participou de fase inquisitorial, que não tem direito de defesa.

E sempre existiram essas dificuldades de juiz se distanciar do acusador. O acusador está mais perto. O membro do Ministério Público às vezes trabalha no mesmo prédio, às vezes são vizinhos de casa. Isso acontece muito na Justiça estadual. Então você fica muito condicionado.

Por isso, quando tem essa possibilidade de fazer essa separação entre o juiz que acompanha a instrução, que é o juiz das garantias, e o juiz que vai efetivamente julgar o processo a partir do contraditório, a partir da produção de provas, eu entendo que é excelente. Vai garantir aquilo que a Constituição Federal estabeleceu em 1988, que é o princípio acusatório no processo penal, que as partes tenham paridade de armas.

Existem exemplos de outros lugares em que a Justiça funciona com juiz das garantias? Isso não é uma jabuticaba. Existe em vários países: Paraguai, Colômbia, Equador, de uma certa forma nos Estados Unidos, na França. E outra coisa: não é novidade para a gente. O Dipo [Departamento de Inquéritos Policiais] de São Paulo funciona mais ou menos desse jeito. São 13 juízes para participar apenas do inquérito. Isso há 36 anos. 

Mas uma reportagem da Folha mostrou que, por dificuldades orçamentárias, não foi possível expandir isso ao interior do estado. É problema de verba. A partir do momento em que mudar a estrutura, obrigatoriamente vai ter que expandir.

O problema é que a gente está num país já há algum tempo num clima pior que de flá-flu. É clima de guerra de torcida. 'Ah, isso [juiz das garantias] é porque agora aconteceu com a Lava Jato'. Na realidade houve uma comissão de juristas, em 2009, que fez uma proposta nesse sentido que virou um projeto de lei do Senado. Nessa época nem se cogitava a investigação na Petrobras.

A criação do juiz das garantias é anterior a tudo isso. Então tem que acabar com esse clima de flá-flu e falar: dá para fazer, dá para aproveitar uma boa experiência que existe em São Paulo e em outros países. É melhor para o processo penal? A mim parece que é. Se não der certo, volta atrás. 

O sr. fez duras críticas ao conteúdo das mensagens reveladas pelo The Intercept Brasil, quando ainda estava no TRF-4 [ele se aposentou em novembro]. Considera que o juiz das garantias poderia evitar episódios como aquele? Exatamente. Não estou fazendo juízo de valor se devia ser assim ou assado no passado, porque eu vou estar criticando o que não deveria criticar, que é um tribunal que eu fiz parte até outro dia [TRF-4] e um juiz que foi um valoroso colega [Sergio Moro], uma pessoa com quem tive uma excelente relação. Não quero fazer essa crítica. Eu digo que vai evitar no futuro que se tenha esse tipo de visão, esse tipo de preconceito e visão de um Judiciário parcial.

A Ajufe, entidade que o sr. presidiu, entrou com ação no STF contra a criação dos juízes das garantias alegando que ela deveria ter sido feita por lei complementar. Qual a sua avaliação? Eu respeito muito a Ajufe, tenho o maior carinho pela entidade que presidi, mas me parece que este é um tipo de argumento que não subsiste porque, se for assim, não se pode fazer nenhuma alteração em legislação processual que não decorra de iniciativa do Supremo Tribunal Federal com quórum especial da lei complementar. É uma alteração processual.

Acho que é um interesse legítimo, uma manifestação legítima dentro das esferas de competência da Ajufe, mas que me parece que exista muito mais o viés da corporação do que efetivamente da técnica legislativa.

A instituição dos juízes das garantias pode atrasar processos? Sim e não. Eu vi, como juiz, inquéritos demorarem anos ou décadas no sistema antigo. Como vi processos tramitarem com rapidez. Depende da maneira que vai encaminhar.

Tem o problema da reestruturação, porque efetivamente se for pensar que tudo tem que ser dividido em termos penais vai ser muito difícil essa implementação. Mas isso é muito jogar um medo que não existe.

Eu, sinceramente, não acredito que vá atrasar a investigação. Pode acontecer o contrário, acelerar a investigação, porque vai ter juízes voltados só para o momento da investigação policial, para o momento da decretação das medidas.

 

Faltam juízes no Brasil para implantar esse novo sistema? Eu vejo a experiência do Dipo, que deve ter um universo enorme de inquéritos policiais em São Paulo. São 13 juízes [que cuidam apenas das etapas relativas à investigação].

Penso que há possibilidade de criação através da regionalização, através de medidas administrativas que se tome. Por exemplo, priorizando o processo eletrônico. Então sempre pode ter soluções criativas. 

Vai haver aumento de gastos por causa da implantação de juízes das garantias? Acho que não. Não necessariamente me parece que tem que haver aumento de custo nenhum. Basta organizar, ter criatividade.

Eu digo isso porque o Judiciário nos últimos anos tem dado vários exemplos de criatividade sem aumento de custos. Há soluções inovadoras. 

Hoje a gente pode ter uma testemunha lá em Manaus para ser ouvida em Porto Alegre, através da videoconferência.

O prazo de um mês para a implementação dos juízes das garantias não parece curto demais? Sem dúvida nenhuma. 

Vai ter realidades distintas. Então temos que ter soluções diferentes. E me parece que aí é a finalidade do Conselho Nacional de Justiça, que tem uma comissão para isso, identificar essas peculiaridades locais e procurar uma solução que seja a melhor em todas as distâncias.

Jorge Antônio Maurique, 59

  • Formado em direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em 1985
  • Advogou até 1987
  • Juiz de direito de 1987 a 1993
  • Juiz federal de 1993 a 2012
  • Em 2012 nomeado para o TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) onde atuou até novembro passado, quando se aposentou
  • Presidiu a Ajufe (Associação dos Juízes Federais) de 2004 a 2006
  • Foi Conselheiro do ​ CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de 2007 a 2009​
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