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Projeto de lei das fake news é autoritário e institui uma espécie de internet de exceção

Texto não se dá conta da capacidade de adaptação darwiniana dos usuários, segundo professor

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Lenio Luiz Streck

Advogado, jurista e professor de direito constitucional na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Autor de "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise" e organizador de "O Livro das Suspeições: o Que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e Suspeito?", entre outros livros

A Câmara dos Deputados vai apreciar o projeto de lei 2630/2020, já aprovado no Senado e denominado Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que impõe aos serviços de mensageria privada “guardar os registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa”, em seu artigo 10.

Se eu tivesse que resumir essa proposta em uma frase: um projeto sem exposição de motivos, ideologizado, de emergência e que, em nome da segurança, gera, paradoxalmente, insegurança, jogando fora a água suja com a criança junto.

Fato: o Brasil possui o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD), que são normas regulatórias reconhecidas e elogiadas pela comunidade internacional.

Probabilidade: tudo pode ruir em poucos dias. O projeto viola a proibição de retrocesso (Soziales Rückschrittsverbot).

Constatação: entre tantos defeitos –com destaque para a instituição de um “tribunal da verdade” (ou da verificação da mentira)–, o artigo 10 parece ser o ponto da discórdia que pode destruir o Marco Civil da Internet, levando ladeira abaixo a privacidade nestes tempos do império do “olho invisível do poder”.

Nenhuma democracia constitucional do mundo sacrificou, deliberadamente, a liberdade, a privacidade, a inviolabilidade das comunicações e a segurança de seus cidadãos nos moldes propostos pelo projeto de lei.

Aliás, vale destacar, aqui, recente e importante decisão do Tribunal Constitucional Alemão que restringe o acesso das autoridades estatais aos dados pessoais dos usuários de aplicativos de celular e internet.

O projeto é autoimplosivo. A partir de qualquer simulação que se faça, é possível perceber o “salto no escuro” da pretensão regulatória.

Por exemplo, de um lado uma mensagem X (por exemplo, foto) é enviada, originalmente, para cinco usuários, que a encaminham para cinco grupos de conversas, atingindo um total de 1.500 pessoas, tudo num prazo inferior a 15 dias.

Uma vez configurado o encaminhamento em massa, o rastro dessa mensagem deve permanecer registrado por três meses. Caso a mensagem possua conteúdo ilícito, seu rastreamento poderia ser requerido judicialmente.

De outro, uma mensagem Y (por exemplo, ofensa a um parlamentar) é enviada, originalmente, para apenas dois usuários, que a encaminham para dezenas de grupos de conversas, atingindo centenas de milhares de pessoas, sem, contudo, ser reencaminhada.

O rastro da mensagem Y deve permanecer registrado até o 15º dia, quando então poderá será descartado. Essa situação não configura encaminhamento em massa e, portanto, seu rastreamento não pode ser requerido judicialmente.

As hipóteses são inúmeras. Ou seja, o projeto não se dá conta dessas idiossincrasias da vida real e tampouco da capacidade de adaptação “darwiniana” dos usuários das redes sociais e aplicativos de comunicação.

Não fosse suficiente, o projeto de lei silencia sobre diversos pontos não menos relevantes:

(i) como e quando se efetiva a ordem judicial que determina o rastreamento?

(ii) qual o termo de início da contagem do prazo de três meses?

(iii) o aplicativo de comunicação instantânea é obrigado a eliminar espontaneamente os registros após o terceito mês?

(iv) como saber qual a intenção que leva a determinado compartilhamento, visto que toda difusão pressupõe um juízo de concordância ou discordância do usuário?

(v) o que dizer das mensagens que são replicadas como se originais fossem?

(vi) caberá aos usuários armazenarem um enorme contingente de mensagens para salvaguardar os contextos das mensagens encaminhadas?

Moral da história: nem com muita boa vontade o projeto é aceitável. Porque é autoritário, instituindo uma espécie de internet de exceção. Chamemos Winston, o personagem do livro 1984, de George Orwell.

O “Grande Irmão” já não será ficção. Para se proteger, você terá que guardar mensagens por meses. Para quê? Para mostrar que você não tem nada a ver com tais e tais tretas que rolaram. Pois é. Você é um criminoso por presunção.

Ao contrário do que deveria ser, se aprovado o projeto, não é o Estado que deve provar que você descumpriu a lei. É você quem deve provar que é inocente. Há um famoso adágio que diz: democracia é quando você dorme tranquilo e sabe que quem bate na sua porta às 6h da manhã é apenas o leiteiro.

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