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Vitórias de Lula na Justiça reabrem disputa narrativa com Moro para 2022

Não é casual que o ex-juiz esteja se movimentando de novo de olho na Presidência

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São Paulo

Há alguns séculos no tempo da política, em 2016, a divisão de dicionários da Universidade de Oxford cravou "pós-verdade" como a palavra definidora daquele ano.

Era o tempo da ascensão bizarra de Donald Trump à Presidência americana, com seu exército de mentiras virtuais, que torciam a realidade em favor do batido clichê da narrativa. Pós-verdade mal durou um verão, o conceito de guerra de narrativas se consolidou, mas no fundo tudo desagua no mesmo oceano.

Manifestantes contrário a Bolsonaro carrega foto de Lula enquanto presidente, em Brasília
Manifestantes contrário a Bolsonaro carrega foto de Lula enquanto presidente, em Brasília - Ueslei Marcelino - 29.mai.2021/Reuters

Em resumo, ninguém sabe o que é verdade, uma dúvida que ronda o Ocidente desde que Pôncio Pilatos interrogou Cristo. Isso dito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) colheu nesta quarta (23) uma vitória simbólica importante no seu capítulo particular nessa grande guerra.

Desde as primeiras revelações da Operação Lava Jato, em 2014, até o impeachment de sua desastrosa sucessora Dilma Rousseff dois anos depois, o chefão petista viu impingido a si o epíteto de ladrão.

Pegou 580 dias de cadeia por isso, aliás. Enfrentou 17 acusações diversas, algumas sustentadas em fatos e dados, outras esotéricas.

Do outro lado, o caminho político foi inverso. De herói do combate à corrupção, o ex-juiz Sergio Moro hoje é visto com um pária por talvez a maioria do mundo judicial.

Isso se deu muito pelo trabalho estruturado pelo grupo Prerrogativas, que reúne advogados na mesma faixa de frequência do petismo. Ao longo dos anos, ele trabalhou no apoio às ações questionando a parcialidade de Moro no julgamento do tríplex do Guarujá e fez lobby intenso junto aos ministro do Supremo.

Historicamente adversário da esquerda, o ministro Gilmar Mendes aproximou-se do grupo. Expoente da ala legalista do Supremo e crítico de primeira hora dos expedientes de Moro, ele comungou de teses contrárias ao ex-juiz da Lava Jato com o Prerrô, como os membros gostam de chamar o grupo.

Não só ele. Foram feitas audiências virtuais com diversos ministros, num processo que ao fim viu o Moro desqualificado em seu julgamento. As provas reunidas estão aí, e nada garante que Lula não terá de enfrentar novamente algumas das acusações.

Isso dito, são 15 de 17 acusações derrubadas inicialmente.​ Não é pouco, politicamente. Contando com o tempo da Justiça, Lula poderá balançar a eleitores centristas incomodados com a existência de Jair Bolsonaro esses atestados de idoneidade, os mais vistosos entregues pela Corte Suprema.

Claro, nada disso valerá, na tal guerra das narrativas, para o eleitor bolsonarista mais renitente.

Mas para este o próprio Supremo é um ente ilegítimo —do "cabo e soldado" de Eduardo Bolsonaro às críticas do presidente, passando por Abraham "bota esses vagabundos na cadeia" Weintraub, o ódio à corte é uma constante do grupo.

Ainda faltam casos laterais para Lula se livrar, afora alguma aceleração do uso dos dados dos processos que eram de Moro. Tudo indica que o ex-presidente entrará 2022 podendo construir sua nova narrativa, sem julgamento particular aqui.

Não por acaso, enquanto isso tudo se desenrola, Moro parece ter saído da letargia na qual se meteu desde que deixou o governo Bolsonaro com jeitão de homem-bomba.

As acusações gravíssimas feitas no também longínquo abril de 2020 por Moro se perderam. Sua adesão ao governo do capitão reformado soou como uma confissão de culpa acerca de suas intenções de desqualificar Lula em 2018, seja isso verdade ou não.

A ala garantista do Supremo, ora com a mão mais forte no jogo, desmontou o que restou da imagem de Moro no meio jurídico. Bolsonaro, em seu conluio com o centrão em nome da sobrevivência, imolou a Lava Jato no altar da amiga Procuradoria-Geral da República.

Politicamente, Moro conseguiu ser odiado pela franja mais à direita do bolsonarismo, mas manteve apoio entre setores de classe média, o estamento militar e até atores do dito centro democrático. Não por acaso, esteve no natimorto manifesto do grupo em abril.

Até aqui, o ex-juiz era visto como uma figura que buscava um papel lateral em 2022, talvez de apoio. Mas, como mostrou a revista Veja na semana passada, ele já aceita novas sondagens sobre seu nome e até mesmo a distribuição de outdoors clamando por sua candidatura.

É tudo um teste, mas que caminha lado a lado com a reabilitação legal de Lula, disparada por Edson Fachin no Supremo, em março.

Com Bolsonaro cada vez mais enrolado nas suas próprias patranhas e no fogo da CPI da Covid e de ruas à esquerda, para não falar no risco de racionamento de energia, o buraco da tal terceira via pode alargar-se.

Até aqui, nela caminham oficialmente Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). O primeiro é muito esquerdista e com um teto relativamente conhecido, o segundo ainda precisa desenvolver sua estratégia de exposição.

Moro, dado por todos eles como fora do jogo, parece um nome próximo o suficiente do movimento bolsonarista original para tentar apresentar-se novamente enquanto a debacle do ex-chefe toma corpo. Institucionalmente, ele conta com apoio militar, o que não é desprezível no anômalo Brasil de 2021.

Assim, a volta de Lula ao campo poderá embutir uma tentativa de retorno de Moro, seu nêmesis ora em desgraça.

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