Jornal de favela no Rio completa 16 anos, ajuda moradores e se expande na pandemia

Voz das Comunidades se transforma em ONG e planeja abrir nova sede e inspirar outros veículos das periferias

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Rio de Janeiro

Trinta crianças sentavam à sua frente durante um evento corporativo em São Paulo quando uma delas fez a pergunta: “É verdade que na favela só tem bandido?”. Rene Silva trabalhou durante 16 dos seus 27 anos de vida para banir essa frase, que teima em voltar.

Mas as coisas já não são mais como antes, ele diz, quando era garoto e saía pelas ruas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, para denunciar o esgoto a céu aberto em uma folha sulfite impressa em preto e branco. Ele cresceu, o jornal que criou virou referência, e a favela ganhou voz.

Hoje, essa voz é pronunciada no plural —Voz das Comunidades— e só se expande. Os cem exemplares que ele entregava de porta em porta viraram 15 mil e neste domingo (15) vão circular pela primeira vez no Vidigal, morro da zona sul do Rio onde uma segunda sede está sendo montada.

“Sabemos que as favelas que têm algum tipo de comunicação comunitária conseguem alcançar muito mais recursos e espaço midiático do que as que não têm. Se tem operações ou mortes no Alemão, por exemplo, a informação repercute imediatamente”, diz Rene.

Ele descobriu isso em 2010, quando começou a narrar lá de dentro, em tempo real, os impactos da megaoperação policial que ocupou o complexo. Viu seus seguidores no Twitter crescerem exponencialmente em horas e marcou uma nova forma de fazer jornalismo.

O projeto, porém, acabou crescendo para além do veículo de comunicação. Se tornou ONG e abraçou a área de responsabilidade social com a mesma força que a reportagem, exercendo um papel fundamental nesses territórios também durante a pandemia da Covid-19.

O Voz mantém um painel para mapear os casos e mortes pela doença em 14 locais e integra um gabinete de crise formado por coletivos do Alemão. Foram mais de 50 mil cestas básicas e 35 mil toneladas de produtos de limpeza e higiene entregues em cerca de 50 comunidades.

“Não adianta a gente chegar numa favela já querendo fazer matéria, temos que entregar o social também, até porque nascemos disso”, lembra Gabriela Santos, 24, que cuida do planejamento estratégico da organização.

Visitas ao quartel dos bombeiros e um cinema gratuito para 300 crianças estão entre as ações.

Os 28 funcionários fixos são “crias” de favelas, quase todos abaixo dos 30 anos de idade.

Contam ainda com parceiros locais voluntários espalhados pela cidade, o que permite que os jornalistas entrem em lugares sob o domínio de qualquer facção criminosa ou milícia —no Rio, há um risco a moradores que circulam por territórios de grupos rivais.

Certas coisas, no entanto, não podem ser publicadas. Nomes de facções ou de policiais envolvidos em denúncias de abuso são omitidos em nome da segurança da equipe. “Não tem nem como, a gente mora aqui, tem que ser sempre imparcial”, diz Gustavo Barli, 23, responsável pela produção cultural.

A coordenadora de jornalismo, Melissa Cannabrava, 30, exemplifica com um episódio de uma chacina: “Alguns disseram: ‘Ah eles eram envolvidos’. Mas para a gente são pessoas que foram alvejadas dentro de uma casa e morreram, então vamos noticiar dessa forma”.

Ela cita também questões como o “gato” de energia, presente em qualquer comunidade. “Não podemos ficar falando ‘olha o quanto é ruim isso’ porque existe toda uma necessidade, toda uma filosofia de vida. Temos o posicionamento de respeitar esses espaços”, diz.

Os cuidados não evitaram que Rene e seu irmão fossem algemados e detidos por policiais em 2016 ao filmar uma remoção de barracos, acusados de desacato e desobediência. Recentemente um repórter também teve o celular quebrado por um agente durante uma cobertura.

Para o Voz, porém, tratar dos problemas é tão inevitável quanto coadjuvante. No site, nas redes sociais e no aplicativo do jornal, o retrato da favela é muito mais vivo e colorido. Empreendedorismo, esporte e histórias de moradores são o prato principal.

“Quando a grande mídia não está tão presente, é necessário criar meios de comunicação para que essas pessoas também sejam inseridas, também sejam capas de jornais. Há coisas positivas acontecendo aqui o tempo inteiro, temos que fazer reunião da reunião para selecionar as pautas”, diz Rene.

De maneira geral, opina, o jornalismo trata as favelas como espaços homogêneos e negativos.

Ele cita a chegada das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), noticiada como uma pacificação geral da cidade quando só abarcava 40 das mais de 1.200 comunidades do estado, e como se boas iniciativas só tivessem entrado após o programa.

Essas escolhas renderam credibilidade ao jornal tanto dentro quanto fora das favelas. Enquanto moradores confiam suas histórias e abrem suas casas, os chamados padrinhos e madrinhas dão suporte financeiro e visibilidade à organização.

Nessa lista entram artistas como Fábio Porchat e Preta Gil e jornalistas como André Trigueiro e Andréia Sadi, que deu dez bolsas para um curso de jornalismo político à equipe. Também entram no caixa verbas de publicidade e doações de investidores.

“Chamamos de investimento porque conseguimos medir o nosso impacto, como os problemas sociais resolvidos e os projetos ou pessoas que tiveram repercussão em outros veículos de comunicação através do jornal. O resultado é muito perceptível.”

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