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Tema das fake news no Congresso envolve saúde das eleições e o básico da liberdade dos usuários

Poder ilimitado a empresas ou ao Executivo sobre limites para a liberdade de expressão é solução inconstitucional

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Ivar Hartmann

Professor associado do Insper. É mestre (Harvard) e doutor (UERJ) em direito

As duas mais debatidas iniciativas legislativas sobre regulação de conteúdo em redes sociais têm relevantes pontos em comum que passam despercebidos.

De um lado, o Projeto de Lei 2630/20, apelidado de PL das Fake News, já aprovado no Senado, chega na fase final de debates abertos promovidos pela Câmara de Deputados.

De outro, a medida provisória do presidente Bolsonaro sobre direitos dos usuários foi felizmente devolvida pelo Senado e suspensa em decisão monocrática pelo Supremo Tribunal Federal.

Derrotada, a MP virou o PL 3227/21, que agora também tramita na Câmara. O relator do PL das Fake News, deputado Orlando Silva, defende com razão que ambos projetos sejam analisados em conjunto.

Trata-se da mais importante pauta para a liberdade de expressão e a saúde do debate público nas eleições em 2022.

O primeiro ponto em comum entre as duas iniciativas é que suas primeiras versões apostaram no caminho errado.

O PL das fake news chegou a conter uma definição do fenômeno que seria aplicada pelas redes sociais para realizar remoções. Mesmo adotando um conceito funcional, é altamente difícil e controverso decidir, em cada caso, o que configura fake news.

Legitimar e incentivar o papel das plataformas privadas de árbitras daquilo que é a verdade ou mentira no debate público irá piorar o problema.

Neste momento, a esquerda brasileira está satisfeita com a censura imposta a Bolsonaro e Trump.

Mas essas empresas também adotam lógicas machistas e homofóbicas para remover posts, fotos e vídeos, suprimindo mensagens identitárias importantes de movimentos progressistas.

Os termos de uso das redes poderiam ser facilmente utilizados em 2022 para censurar, a título de combate a fake news, declarações de que o impeachment de 2016 foi golpe.

Hoje, nada específico na lei nos protege disso. A preocupação com a liberdade de expressão dos usuários das redes sociais é apartidária.

Da mesma forma, o PL de Bolsonaro repete o erro da MP ao criar a categoria da “justa causa” para engessar a moderação feita pelas redes sociais.

Ao remover conteúdo sem justa causa, a empresa poderia ser multada ou ter sua operação suspensa. Como órgão fiscalizador definido pela proposta, o próprio Executivo teria o poder de decidir, em cada caso, se a remoção era justa ou não.

Os problemas sistêmicos decorrentes da atuação de empresas privadas como árbitras da liberdade de manifestação política são ainda pouco documentados. Mas um arranjo que garante ao Executivo a palavra final sobre o mérito da manifestação dos cidadãos tem um custo catastrófico plenamente conhecido.

Poder ilimitado para as empresas de mídia social ou o Executivo ditarem os limites da liberdade de expressão dos brasileiros não é apenas uma solução inconstitucional. É também ignorar o problema.

Muitas pessoas acreditam que as redes sociais são excessivamente permissivas e deveriam remover mais conteúdo.

Na verdade, o Facebook, apenas entre maio e junho, tomou ação sobre 958 milhões de manifestações no mundo –por iniciativa própria e sem obrigações legais. Pelas mesmas razões, o YouTube removeu no mesmo período meio milhão de vídeos brasileiros.

Isso resolveu o problema das fake news? Obviamente não. Por pelo menos três razões.

Primeiro, especificamente no Brasil, grupos fechados em aplicativos de mensagens são provavelmente o meio de maior volume e impacto na circulação de fake news.

No WhatsApp, as comunicações dentro desses grupos são criptografadas e estamos muito longe de compreender o que realmente acontece, com dados de grande amplitude.

Segundo, bots e disparos mecanizados de mensagens em massa são um elemento decisivo na circulação de fake news. São vias frequentemente usadas em desacordo com regras formais das plataformas e não é necessária absolutamente nenhuma análise de mérito do conteúdo para bloqueá-las.

Terceiro, a produção e disseminação de desinformação é também fonte de lucro para muitos sites e perfis, que recebem das plataformas digitais como Google e Facebook parcela significativa das receitas de publicidade que antes sustentavam o jornalismo investigativo.

O sistema atual de propaganda com alocação algorítmica encheu os bolsos de quem veicula fake news e secou as fontes de receita da imprensa tradicional.

Um manifesto de associações de imprensa de diversos países, divulgado há pouco, defende a regulação de novos meios para financiar o jornalismo investigativo, um bem vital para qualquer sociedade democrática.

Agora e nas próximas eleições, o Brasil não precisa aumentar o volume de remoções de conteúdo, que já é exorbitante.

É preciso que o Legislativo estabeleça um mínimo de limites para o exercício da censura privada pelas redes sociais e proteja algumas prerrogativas básicas decorrentes da liberdade de expressão dos usuários. A agenda de redes sociais para 2022 deve estar focada no devido processo.

Esse é o segundo ponto em comum entre o PL das fake news e o PL de Bolsonaro. Ambas propostas incluem a garantia de que ao suprimir uma manifestação ou remover uma conta, as empresas devem obrigatoriamente notificar o usuário dessa decisão.

A razão da decisão deve ser explicitada, não sendo mais possível que a justificativa indique apenas algo vago como “violou nossos termos de serviço”.

Se o Judiciário, ao restringir a liberdade de expressão dos cidadãos, é obrigado constitucionalmente a fundamentar suas decisões, por que as redes sociais estariam acima dessa responsabilidade?

Ambas propostas também exigem que o autor da manifestação censurada possa recorrer da decisão. A vasta maioria das decisões sobre conteúdo hoje são tomadas por inteligência artificial. A Lei Geral de Proteção de Dados já garante o direito de solicitar revisão de decisões mecanizadas.

O Congresso agora tem agora a oportunidade de especificar as condições de exercício desse direito no caso da supressão automatizada em massa de manifestações.

Com ou sem obrigação legal, as redes sociais já investem pesadamente na identificação e remoção de fake news.

Para garantir que essa atuação respeite prerrogativas básicas decorrentes da liberdade de expressão dos usuários, o Congresso deve adotar como pauta a regulação do devido processo na moderação de conteúdo online, de modo a garantir um debate público plural e saudável agora e em 2022.

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